segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

156 - as pernas e os braços

As pernas são pessoas guiadas pelos pés que sentem urgências.


As pernas são pessoas guiadas pelos pés que sentem urgências. Os braços são outras pessoas, muito diferentes das pessoas que são pernas, ou melhor dizendo, das pernas que são pessoas. Essas pessoas mais acima, assim chamados de braços, são agitados pelas suas mãos que acenam constantemente a algo ou alguém.

Não quero dizer que a urgência dos pés e a agitação das mãos façam delas pessoas inimigas. Certo que, não raras vezes, demasiadas até, os pés vão na direcção contrária do aceno das mãos, e as mãos estalam os dedos sem que os pés se importem em se dirigir para lá.

Sobra a isto, que os cotovelos e os joelhos são em cada uma dessas pessoas o factor da harmonia. Não foram feitos para nada, a não ser, como elemento essencial para dobrar as vontades contraditórias.

Aqueles pés que ali vão a correr, são ajudados pelos cotovelos dobrados e que assim ajudam as mãos a articular o aceno em sentido contrário.

Até parecem instrumentos musicais de uma orquestra amadora, mas que aprende conjungar sons em resposta aos sons perguntados. 

Olha agora mesmo, aqueles belos joelhos que flectiram a assim permitiram que os braços se levantassem e agitassem num momento de esquerda direita, repetido numa exaustão, sem que os pés fizessem distorcer a vontade das mãos.

Seguramente que ali não se percebe o quão sincronizado conseguem fazer parecer.

Um dia inventaram que entre o andar de baixo, as pernas, e andar de cima, os braços, deveria ser construído um lugar fronteira com o intuito de acomodar as vontades destas pessoas e tornar conciliadora a vida constantemente atribulada.

Assim foi construída, numa posição intermédia e em ligação com as pernas pessoas do andar de baixo e os braços pessoas do andar de cima, um espaço vazio chamado barriga.

Era para ali na barriga que tudo confluia. Da avareza das mãos, às solas dos pés gastas e roídas, passando pela necessidade de reparar as meias articulações dos joelhos e cotovelos, ali na barriga se juntava a nuvem das necessidades.

Os braços e pernas, libertas de preocupações, sentiram a cada ano que passava, estavam menos activos. Os pés menos urgentes e as mãos menos agitadas, ao passo que as dobras dos cotovelos e dos joelhos raramente se articulavam.

Foi feita uma reunião de urgência e emergência entre os representantes do piso inferior e do superior, à qual convocaram a barriga.

Passaram dias e dias seguidos em discussão, em acusações e atribuição de culpas. Uns porque assim e os outros porque assado. Pior, aqueles porque cozido e os demais porque frito. Nisto, a barriga, pesada e cansada, pediu a palavra. Aquela voz de onde saía através de um eco, agora comunicava quase por murmúrios imperceptíveis. A custo e a cada das partes, lá se conseguiu fazer entender. Desde que a barriga tinha sido criada, as pernas e as mãos, despejavam todas as coisas boas e más lá para dentro, sem cuidar de como se sentiria a barriga.

Assim a barriga, primeiro engordou, depois adoeceu, depois inchou tanto que mal conseguia continuar a receber o que para lá era despejado.

Assustador, disse as pernas. A culpa é desses braços nervosos.

Maquiavélico, respondeu os braços. Isso já se vê que é obra dessas pernas, que não sabem por onde andam.


A cabeça

domingo, 19 de fevereiro de 2023

155

Eu não sou aquela pessoa em que me tornei,
Não me revejo ali, se bem que sou aquilo que ali me vejo ao sobrevoar a carcaça do que fui,
Ou destruo-me por implosão
Ou destruo tudo por explosão

154

Eu não sou aquela pessoa em que me tornei,
Não me revejo ali, se bem que sou aquilo que ali me vejo ao sobrevoar a carcaça do que fui,
Ou destruo-me por implosão
Ou destruo tudo por explosão

153

Eu não sou aquela pessoa em que me tornei,
Não me revejo ali, se bem que sou aquilo que ali me vejo ao sobrevoar a carcaça do que fui,
Ou destruo-me por implosão
Ou destruo tudo por explosão

152

Já ninguém usa galhardetes no espelho retrovisor do seu automóvel

Ou

A estranha história de um Bengaleiro, do Pisa Papéis e do Galhardete no Absurdistão

151

Um homem dos seus quarenta e poucos anos em regresso de viagem e a pouco mais de trinta minutos de chegar a sua casa, reparou numa espécie de terreno desocupado onde estava um menino sozinho a brincar.
Teve o ímpeto de parar o carro e observar o cenário circundante ao espaço. Viu terra desmatada, arbustos, restos de entulho de alguma obra realizada ali próxima, o menino a brincar com pedras e um silêncio que se prolongava pelas redondezas.
Na proximidade das casas não se via qualquer pessoa à janela, numa daquelas tarefas básicas que não podem ser realizadas entre portas, estender a roupa, sacudir um pano, fumar um cigarro, respirar simplesmente. 
O menino reparou na passagem do carro e depois da sua presença uns bons metros mais à frente estacionado. 
Primeiro de dentro do automóvel e depois em pé do lado de fora, um homem olhava na sua direcção. Reparou nele mas entretido na sua tarefa pouco lhe deu atenção. Com pequenas pedrinhas construía uma estrada para, seguramente, poder trazer os seus pequenos carrinhos de brincar, isto se a construção não seja demasiado demorada e assim poderá testar a sua obra. 
Quando remexeu o corpo e olhou de novo para o carro e o homem que tinha visto chegar já o lugar estava vazio. 
Se bem que tinha visto ali alguém, não foi suficientemente curioso para notar curiosidade na sua chegada e saída. 
Passados uns dias o homem regressou ao local descampado. Algo ali lhe tinha sugerido que a sua atenção pudesse ter sido atraída por um elemento que descurou, mas que ao mesmo tempo, a sua inexistência causava um desconforto. Tinha a sensação de alguma coisa que não explicava mas deixou uma subterrânea impressão. Tal como uma ferida ou nódoa negra que pode aparecer no corpo mas sem que possamos perceber a sua origem. 
Voltou ao local. Estacionou o carro e saiu. Sem urgência e sem necessidade de acelerar o passo, deu uma volta pelo local. A luz era diferente, o som mais presente, ele era o mesmo mas num estado de alerta e curiosidade vincado, o menino já não estava a brincar agachado sobre um monte de terra. Estava um velho e um cão 


O homem evolui quando planta árvores em sítios de onde sabe que não sentirá o fresco da sua sombra ou o doce do seu fruto. 

Há uma idade que a partir da qual se sente anoitecer

As pessoas querem mudar o mundo mas não sabem como o fazer. Uma das principais razões para que isso aconteça é que as pessoas só querem idealizar um pensamento meritório. Mas que não tem qualquer representação através da iniciativa.
Mudar primeiro a atitude e acção individual para que possa gerar um mecanismo de mudança. Este processo, se for realizado e de alguma criar mesmo que minúsculos impactos no indivíduo, no ambiente que o redeia e repercutir nas pessoas das suas principais linhas de contacto, cada uma dessas pessoas pode de alguma forma ser um potencial candidato a recriar o movimento de acção. A comunidade local, regional e nas suas sucessivas superiores camadas, tem estatisticamente ínfimas mas cada vez maiores probabilidades de assumir uma acção colectiva. Isto gera uma percepção comunitária de produzir e induzir o bem comum.
A natureza reflecte por condição de sobrevivência e evolução das espécies, botânicas ou animais, este trabalho dos indivíduos que a compõe. Por exemplo, uma colmeia de abelhas, uma manada de gnus, um ninho de formigas. O espírito de protecção da comunidade tem tendência a gerar uma descendência forte suficiente para que possa procriar e garantir que o código genético da espécie é salvaguardo.
A contradição de todo o processo transposto para a condição do ser humano, baseia-se na consciência primária e inata de indivíduo que prevalece sobre o ideal de comunidade. O bem comum é restrito ao próprio e pouco mais abrangente que a sua linha directa ascendente e descendente possa inferir no ideal de realização pessoal. Enquanto que as espécies não humanas apresentam laços que muitas vezes só a distância os quebra, ao invés nos seres humanos nem a proximidade ou ligação de vizinhança gera condições de contacto comunitário.

150

Sobre escolhas

Escolhe alguém que seja como o sapo que espera um beijo da amada para de tornar num príncipe.
Alguém que seja como o polvo e tenha tantos tentáculos que te abrace sempre que necessário.
Seja como o cavalo marinho que guarda em si as crias e as protege até que possam ser libertos.
Ou como a girafa que procure alguém como procura as folhas mais tenras da copa das árvores.

149

Se a vizinha do 6o esquerdo anda a comer a Gertrudes do 1o frente, e também o carteiro, o electricista da loja do prédio do lado, e o marido não sabe, o problema é deles.
Não se metam.
Porquê? Porque às vezes, normalmente sempre, serem bisbilhoteiros dá mau resultado.
Atentem na história bíblica.
O cavalo de Barrabás estava deitado e não se levantava por nada deste mundo, fazia 15 dias. O Barrabás consultou o veterinário e ele disse, bem se o cavalo não se levantar então temos de o abater. Resta dizer que o cavalo Cometa dos Céus, era um puro procriador e tinha feito as éguas da cidade vizinha e ainda virado umas malucas estrangeiras que lá andavam de férias.
O porco que fazia a certificação e controlo de qualidade das carnes ouviu o comentário do veterinário a Barrabás e foi de motocicleta adonde o Cometa dos Céus estava a descansar no seu retiro especial de lavagem da alma.
Cu meta, cu meta, disse o porco ofegante.
Diz o cavalo... Ora bolas que foi, deixa-me dormir
Cu meta, olha o veterinário disse ao teu dono que o melhor é virem cá te fazer falecer caso não te levantes e não faças aquilo para o qual eles te pagam.
O Cometa dos Céus agastado, oh coise que pariu a vida... Virei as éguas todas e um gajo não pode descansar.
Lá se levantou e foi na direcção da casa do Barrabás.
Olha lá mas para que queres que me levante?
Nisto Barrabás pega no telemóvel e telefona ao veterinário e diz "olha não sei como mas a tua sugestão já não é necessário, disseste que era necessário mantê-lo hidratado, e apareceu-me aqui a pedir não sei o quê... Entretanto vou ver se ele se alimenta... Olha, estava a pensar em matar o porco e fazermos uma festa, um churrasco daqueles para homenagear o nosso procriador... O gajo é uma máquina vira tudo o que mexe, isso... "
Nisto de caminho de volta, o Cometa dos Céus passa pelo porco e diz, afinal de contas tu é que vais servir de almoço no churrasco.
Eu, porquê eu, e não me defendeste??? Eu que te fui avisar que o veterinário disse ao teu dono que o melhor era abatê-lo.
Segundo percebi era mantê-lo e não abatê-lo. Mantê-lo hidratado. Se calhar ouviste mal.
Queres ver que tenho de ir ver das orelhas. Antes do churrasco ainda vou à consulta do oftalmologista, disse.
Isso, vai tratar desses olhos a ver se ouves melhor.
Conclusão da história?
Bem, vou para dentro.

148

"Foi a terceira vez que iria propor a minha inscrição na Ordem dos Jornalistas, Redactores e Tipógrafos. 
Novamente e munido de um longo texto original, o terceiro por sinal, fazia-me acompanhar do certificado de habilitações que me conferia a designação de Doutor em Ciências da Comunicação, vulgo Jornalista.
Numa pasta comprada para a solenidade que se impunha e preenchidos todos os impressos, vinha por aquele meio solicitar ao Digníssimo Bastonário da dita instituição a admissão da identificada pessoa a Jornalista especialista em Factos do Passado.
Na volta do correio chegava agora a devolução do processo com o carimbo vermelho Reprovado Sem Direito a Recurso. 
Abaixo da cruel mancha esborratada, vinha uma parca mensagem do censor a justificar o motivo do chumbo. Sem complacência e com todo o peso de uma marreta, as bordas da mancha assim impressa denotavam os salpicos sangrentos daquela decisão.
O proponente foi anteriormente informado que a esta Ordem só é admissível a inscrição de jornalistas doutos em Ciências da Comunicação que noticiem factos do presente. E assinado de forma gatafunhada.
Como pode um jornalista anunciar factos do presente, ou até mesmo, especulações sobre o futuro?
Com que direito me impedem que divulgar o passado? Aquilo que acontecido não foi presenciado por outros.
Assim foi, posto isto, ingressei no Colégio Honorífico dos Historiadores e Contadores de Factos do Passado. Agora sim, na plenitude do meu vislumbre sobre o acontecido, posso deixar testemunho dos sentimentos e emoções resultantes daqueles momentos que importa guardar.
E como eu sou especialista em cepticismos e nuvens negras a pairar sobre o futuro da humanidade ..."
(11.2.2020)

147 -

"Todos pedimos coisas. Coisas mais ou menos possíveis, normalmente materiais e quando se pede algo do lado dos afectos ou da consciência, esse pedido não raras vezes é o resultado do que não se fez.
Muito raramente alguém pede "Tempo". O "Tempo" é uma necessidade do ser humano, mas sendo alusivo e remetido para o futuro como algo inevitável de acontecer ou porque simplesmente regressará sob a forma de presente, esse "Tempo" será sempre desprezado.
O doente pede tempo para viver após a doença ou atrasar a chegada da morte, o solitário pede tempo para poder viver o prazer da companhia, o estudante pedirá tempo para adiar a chegada dos exames... Em suma, o tempo pedido advém de uma necessidade presente para recuperar a possibilidade do futuro, sem este quadro colocado com a força da inevitável força da perda, o "Tempo" gasta-se inutilmente."
Dagoberto de Andrade, habitante da península Esgríncia, 1848

146

Acompanhou uns minutos à frente do sentido do por do sol e nao viu anoitecer

Há uma idade que a partir da qual se sente anoitecer

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

145 - alguém a pedido

Preciso de alguém de Segunda a Quinta e de Janeiro a Maio, também de Outubro a Dezembro. No resto eu dou um jeito e cá me desenrasco.
Se puder aparecer entre o entardecer até anoitecer e depois que possa ficar até amanhecer, seria muito útil para mim. Gosto daquelas conversas de luz apagada que costumo fazer comigo, mas com outra pessoa deve ser fantástico.
O problema é que amanheço sempre mergulhado no tédio de acordar com as minhas, mesmas e repetidas, palavras, a que já lhes chamo de noites mentirosas.
Deixei de moer o café de madrugada. Passei a ter receio de incomodar os vizinhos com aquele barulho frenético da trituradora. Nada mais irritante pode ser, alguém acordar com o som da moagem do grão sem saborear o seu cheiro em odor de partículas que convidam a elevar o nariz e procurar, farejar que nem um humano aspirante a canino.
Assim tiro três colheres de café, moído de antevéspera, sem agressão aos alheios, e coloco na cafeteira queimada, que sobrevive em cima do fogão.
São três da manhã; da cama fria para o roupão que lhe sinto a gola áspera, sinónimo de tecido grosseiro, vejo nascer pelo som borbulhado e cheiro a quente, aquele café rotineiro das madrugadas maceradas em cima de uma vigília desnecessária.
Abraço a chávena com as duas mãos, procurando quais dos dedos consegue encaixar na pega e sinto o quente fluir pelas nervuras da carne.
Aqueço. Retempero. Sopro para cima da chávena, só para diluir a fumarola que o frio da cozinha faz descobrir pelo choque da temperatura. Gosto de destruir aquela chaminé de vapor com os meus sopros fulminantes. Não será por isso que o café perde o romantismo que nos gostam de vender nos anúncios da televisão. 
Mas, é porque. 
A cadeira à minha frente define o lugar vago e decido, preciso alguém de Segunda a Quinta, pelo menos, o início da semana é sempre mais dolorosa de passar. À Sexta, é inevitável sentir o frenesim das caras pálidas que parecem ressuscitar da cadência da semana. Até o intragável homem do talho parece outro, sinónimo de melhorado negócio e despacho das carnes sobradas de venda parca do início da semana. Pensa ele que me engana, mas conheço-lhe a manha.
São quatro menos um quarto da manhã e também sei que os meses de Inverno são duros de passar sozinho. Se calhar peço também companhia para essa altura do ano. 
Bem, assim pensando melhor, isto parece fácil, nem entendo como cheguei aqui, se a solução é só pedir. 
Se calhar não sei pedir.
É verdade, tu não sabes pedir. 
A chávena está fria. A zurrapa deixa boiar algumas borras perdidas no remexer vagaroso do café. 
Morreu a espuma primeira, e agora vai pia abaixo. 
São quatro da manhã e regresso à cama. Aproveito para descansar da noite que não consegui dormir.
Está quase a amanhecer e invejo os que desligam o alarme do despertador e se aconchegam em carnes quentes. Essa gente que resmunga e mal sabe o que é o sinónimo de cama fria, revolta-me esse desperdício de resmunguice. Deviam ser proibidos de sair de casa amuados, ao mesmo tempo que me apetece insultar aqueles que são felizes às seis e cinquenta e cinco da manhã, quando ligam os seus rádios dos carros aquecidos pelo ar-condicionado e que são retirados das suas garagens a tempo de ouvir as notícias de um mundo perdido.
Ahh bom. Boas notícias me trazes. Afinal não sou eu que estou perdido, é o mundo.
Muito te enganas, mal sabes que um monte de perdidos fazem o mundo desesperar que alguém lhe dê um sentido à sua improbabilidade de ser neste ponto do céu que se vê estrelado.
Aquilo ali é o quê?
Aquilo é um mundo perdido...

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

144 - O Maior Parafuso do Mundo

A história do maior parafuso do mundo, da sua porca de aperto e dos afins.
A vida criou o maior parafuso do mundo, seguramente para aparafusar coisas enormes, empilhadas em cima uma das outras e aos olhos das tarefas, de modo a parecer forte, bruto, complexo e assustador, capaz de suportar tarefas de grande dimensão. 
Certo dia estava o parafuso amparado, meio encostado e a tombar para um dos lados, com a sombra projectada que não só prolongava o tamanho como lhe conferia o efeito assustador.
Alguém perguntou se o parafuso não estaria incompleto. Que raios, quem inventa o parafuso cria também a porca... A porca? Sim a porca, a contra porca, a anilha e a porca de aperto. 
Os ombros circundantes encolheram os ânimos por desconforto da dúvida. 
Estava pois a tarefa incompleta. 
Depois, alguém decidiu dar utilidade ao maior parafuso do mundo e criar um estudo para produzir uma porca a condizer, e assim, segundo as normas desconhecidas poder terminar o projecto. 
Isso mesmo. 
Uma para apertar, uma para suster e fazer aguentar a que apertava. 
Depois disseram - E aquilo da anilha não é importante? Não ajudará para que o que será apertado, tenha ali uma espécie de guarda para não ferir com a força do aperto? Calculo que com tamanho equipamento seja necessária uma força superior. 
Assim foi. 
Os mestres ferreiros pegaram nas suas mestrias da sabedoria, do alcance dos braços e da força das mãos, e de lá surgiram umas peças equilibradas na harmonia e na simetria com que cada face se mostrava à que se escondia à sua frente. Três pares de faces, em ângulos alinhados até perfazerem um círculo sextavado de seis faces. 
Ao lado do maior parafuso do mundo foi depositado uma porca, uma anilha e outra porca em tudo igual e gémea com a sua depositada em primeiro lugar. Uma apertava e a segunda amparava essa. Quando a força da primeira poderia ter necessidade de fraquejar, estaria ali costas com costas, a sua irmã gémea para não deixar descarrilar. 
Uma dia o parafuso gigante deu de si, descaiu, rolo sobre as suas ranhuras sulcadas no corpo, quase tombou, rolou, rolou e em alerta a porca primeira cotovelou a anilha e esta tilintou, a porca segunda acusou o toque pelo ribombar da trovoada que se adivinhava. 
Lá longe, tão longe quanto os olhos podiam alcançar, os céus destinavam a anunciada chegada de dias sombrios, com ventos contrários, chuva tocada a pedra de granizo que mais pareciam lascas de granito a espirrar contra a terra. 
Caiu a tempestade. Uma tempestade de que não há memória. Os velhos ferreiros diziam que era pior que aquelas faladas de boca em boca e que foram parar à escrita das linhas bíblicas. 
Para que a tempestade seja severa é necessário descarregar a força dessa vontade, só assim ela alivia as nervuras dos elementos destruidores... 
Encharcam-se as terras, galgam as ribeiras em rios furiosos, chegam as chapadas do vento, relâmpagos e trovoadas, trovoadas e relâmpagos, gritos todos mudos e surdos. 
Cegos ficamos. Cegos ficámos. 
Paira o silêncio. 
O maior Parafuso do Mundo inteiro, a porca de aperto, a anilha que aconchega para não ferir e a porca que sustém, estavam agora mergulhadas nos restos da agonia, presas a uma mão maior. 
O barco na amurada precariamente seguro por cordas a terra segura, deixava ouvir aquele ranger que arrepia a pele. 
Esticavam e aliviavam ao sabor da subida do cume da onda e seguravam quando os seixos do chão do mar quase desapareciam no vazar da água fugidia. 
Os ferreiros gritavam - o ferro é da forja, os marinheiros batiam cachimbo na madeira do leme e sussurram - ali vem de feição, em terra os povos pagãos rezavam para que a força aguentasse, mas a tempestade era forte. 
O ancião disse aos ferreiros e aos marinheiros que, ora uns ora outros, faziam do sangue forças para aguentar a empresa, - façam sorte e apontem que a porca entra com a sua saliente rosca em espiral na rosca saliente em espiral do parafuso. Aprender que importa que a mão que segura e aperta não largue. A mão que pegue no corpo do parafuso pela sua cabeça e faça rolar a porca primeira pelo corpo acima.
E assim foi.
O maior Parafuso do Mundo, a sua porca, a anilha e a porca gémea, perceberam que eram um corpo único, desde que receberam o punho férreo de quem segurou e não deixou que a corda que amarrou o barco no porto, enquanto a tempestade era maior que o medo sentido, ali entenderam que quando se ama, o que a solda une e não há forças que possam rachar...
O maior Parafuso do Mundo percebeu com quantas faces se faz uma porca que aperta, sustém e aconchega.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

143 - de aguar

Dos vasos secos, da terra por terminar de lavrar, das pessoas que devemos aguar,
Escovar ossos e memórias remontar aos sons primeiros, ditos e perdidos que a terra guarda registo. 
Escavar e descobrir,
Aguar as vidas sem as encharcar.

142 - Dos Carvalhos, Sobreiros e Nogueiras

Dos Carvalhos, Sobreiros e Nogueiras
Se fosse possível transformar e transportar as espécies de árvores para uma equiparação com as idiossincrasias dos seres humanos, poderei assumir que cada pessoa pode reunir em si ou em grupo, as qualidades básicas que definem cada espécie arbórea.
Nogueiras, Sobreiros, Carvalhos, árvores de fruto corrente, são normalmente alguns exemplos de espécies que se adaptam ao meio ambiente de onde são originárias sem gerar pressão ambiental na deterioração dos recursos naturais.
Em oposição, o Eucalipto, fornecedor intensivo e altamente rentável da pasta de papel, adapta-se facilmente em zonas de condições adversas. Considerando que é uma das espécies de crescimento mais rápido, o que permite o seu corte para utilização industrial, reflecte a condição de conseguir exaurir os solos onde está plantada, pela capacidade tentacular do crescimento das raízes e busca por zonas do solo de onde possa absorver os recursos de que necessita para o seu desenvolvimento. Se plantada em larga escala em pouco espaço, facilmente se pode compreender que após o brutal retorno que proporciona, os terrenos dificilmente poderão ser reaproveitados para a introdução de novas espécies ou culturas.
O ser humano é à imagem dos diferentes tipos de árvores plantadas, uma espécie que desenvolve em comunidade o mesmo tipo de adaptação que o Eucalipto produz.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

141 - "Um homem chamado Ove" de Fredrick Backman

Morrer, falecer, funeral e enterro, são nomes que traduzem a morte.
São actos que diferem no mesmo processo e fim. Morreu. Acabou de falecer. Vou a um funeral. O enterro foi bonito. Tudo à mesma distância do pensamento morte. 
Na leitura, o acto de acabar de ler um livro, tem processos e sentimentos próximos de um certo tipo de morte. Morte literária.
Ove está a vinte páginas de falecer, não como personagem, mas como existência de um propósito. Vestir aquela personagem principal num registo com que o escritor a encorpou e educou para seguir uma determinada história. Termina, terminou, fechou o livro. Ele ganhou a vida que lhe demos e considerámos. 
A vinte páginas do fim, faço-lhe o funeral. Processo cerimonial do acto de enterrar o corpo. Até lá ele irá morrendo aos poucos, mesmo que... 
Por respeito, vai para o local onde morrem as personagens dos livros. Uma prateleira, daquelas parecidas como uma montra de comida suculenta que só de olhar conforta o agudizar da fome. 
Quem diz que os mortos não ressuscitam? 
Seguramente no próximo ano, sentirei necessidade de me aconselhar com aquele contraditório, obtuso homem que a cada passo transpira honra e respeito. Tem cinquenta e nove anos, um silêncio profundo que grita na forma resmungada de viver e não confia nas instituições, tal como nas quase seis décadas de vida o ensinaram a desconfiar de tudo e de todos. 
É, foi, retratou o homem que aprendeu a ser desconfiado como poderia ter sido músico ou médico. As pessoas são o que são porque por defesa própria e dos seus, aprenderam a viver a vida dessa forma. 


(...) "Amar alguém é como mudar de casa, costuma Sonja dizer. Ao início, apaixonamo-nos por todas as coisas novas, todas as manhãs nos espantamos por aquilo nos pertencer, como se receássemos que de repente alguém nos entrasse a correr porta adentro dizendo que um erro terrível fora cometido e que, na verdade, não deveríamos estar a viver num lugar tão maravilhoso." (...) "Claro que Ove suspeitava, no exemplo dado, que ele próprio representava a porta do armário." (...)
Página 278, capítulo 36
"Um homem chamado Ove" de Frédrik Backman 

140 -

Manual de ócio para combater o tédio

139 -

Aceitar pagar a factura

138 -

O passado de um rapaz de 15 anos, são as memórias do homem que é aos 50.

137 - mudança ficcional do ano

A mudança de ano é um evento matemático baseado na renovação da rotina. 
Por sua vez, para que a fórmula mantivesse uma exactidão de estabilidade e simplificação da observação do calendário nos tempos em que a mecânica da datação era totalmente rudimentar, com mínima intervenção de cálculo mecânico, foi mascarada a anulação do excesso e do defeito. A redução do erro foi inventada através da implementação do dia suplementar do ano bissexto.
A superstição necessita de ter por base a existência de uma coincidência mística, e o dia primeiro, se é absolutamente um elemento de continuidade no movimento dos astros, o calendário reveste-o de propósito iniciático. Na cadência daquilo onde o ser humano não tem intervenção, para além da observação; o sol nasce e põe-se, a Lua que compreende uma rotação sobre a Terra, que por sua vez completam em conjunto uma rotação sobre o Sol, esta constante garante da estabilidade da vida, é absolutamente indiferente ao desígnio do falso poder do ser humano. 
Daqui que a componente mística alusiva à festividade da renovação da contagem diarística, retornando a um ponto de  terminus da contagem artificial do calendário e iniciando nova sequência num momento redondo, tal qual a rotação dos planetas sobre o eixo do Sol, que simulasse o circulo da passagem dos dias, semanas e meses, passando pelo mesmo momento de partida mas num anel de contagem superior em espiral, vulgo mudança de ano, necessitaria de um evento visível natural, não desencadeado pelo ser humano, e que justificasse este artifício. 
Se bem explicado, o lançamento de fogos naturais ou festivos no imediato segundo do fecho do círculo, simula o sinal que a humanidade procura e não encontra possibilidade de ocorrer, manifestada pelo e do cosmos. 
Se a natureza cósmica traduz a contagem do tempo na representação humana por uma linha infinita, o ser humano na sua assumpção da interrogação perante o desconhecido e o até então inexplicável à luz da sua capacidade de interpretação dos factos pela limitação de conhecimentos tecnológicos, criou pela consciência, reflexão e arte, a representação do evento. Fosse por gigantescas piras de lume no cimo de montes e montanhas, ou pela explosão e queima de fogos que a mestria da química rudimentar inventou. 
A matemática, expressão científica em conluio com a filosofia, colocou o dia 1 de 365, em substituição daquilo que o cosmos não nos oferece. 
Se não nos emitem do espaço um sinal de alerta para a mudança e interrupção da contagem dos dias e das noites, o ser humano se encarregou de criar o elemento místico, porque ultrapassa o nosso racional e festivo, porque faz alusão ao elemento que não controlamos. 
Em suma, o que a linha do horizonte infinito do tempo é, não mais que um ponto de luz em fuga, o ser humano se encarregou de o parcelar numa contabilidade artificial ao sabor do elemento da metáfora religiosa ou das ideias. A representação da consciência humana através das várias ideologias, colocou o início do seu calendário em pontos distintos do passado, aludindo às diferentes imagens que veneram, sem que consigam alterar o único ponto indivisível da equação. Em qualquer que seja a metáfora ideológica venerada, respeitando e percorendo as 24 diferentes latitudes do fuso horário, o sol nasce e põe-se sempre através do mesmo ponto de observação. 
O que o ser humano não controla por criação, mistifica por alusão.

136 -

E se uma biografia literária de um escritor deixasse de ser contabilizada pelo número de livros publicados, antes, porém, pela medida que ocupa numa estante, o seu peso, ou a quantidade de caracteres escritos...
Aqui és fulano ou sicrano, publicou uma vasta obra de um metro e aproximadamente quarenta e cinco centímetros, que na última pesagem ia com oito quilos e seiscentas, isto contando com duas edições de capa dura...
Alguém disse, brilhante, já é qualquer coisa

135 -

O lápis que escreve o infinito
A ponta de graphite que se gasta na demonstração escrita do belo e do infinito

134 - uma história de amor

Uma história de amor improvável 

Ela chegou ao pé dele e disse - hoje quero-te!
- Lá estás tu, não me queres nada.
- Sim quero-te para sempre.
- Isso é impossível, o sempre não existe e o quero-te é demasiado imediato para quereres assim como dizes.
- Porque és tão difícil? Apeteces-me
- Antes era para sempre, agora apeteco-te? Lá está é demasiado incerto da tua parte.
- Estás sempre a arranjar dificuldades e entraves. Agora já não te quero.
- Vês como tenho razão. Não me querias nada.
- Odeio-te... vá lá porque és assim... Não me queres para ti?
- Não, nunca me dei bem com pantufas disfarçadas de animais falantes...
- Estúpido... nem para pijama serves!!!
- Pronto lá vamos nós começar

133 -

Na guerra ou na simples vida de um homem, a bala perdida que mata é a mais certeira.
Se ela não acertou e passou de raspão, cuida que a próxima tem remetente e destinatário.

132 -

E nisto estava a vida do homem,
Ao lado do lodacento terreno, em terra mais firme, andava a mula em circulo de passo curto, lento, pesaroso, a fazer girar o instrumento da água do poço. 
Com o passar das horas os alcatruzes minguaram no peso da água, sem que isso ajudasse o bicho em leveza do arrastar das mãos da frente e das patas de trás, 
A terra que a noite não ajudou a compor o carreiro, o dia menos novidade trazia.
Pobre da mula, esperemos que o animal seja burro e não pense na sua sorte,
Vai seguindo a compasso,
Pisa e repisa o carreiro,
Seguramente as palas ajudam a esconder o caminho de outras distracções,
Não vá a mula entontecer e dar-lhe um desmaio por andar às voltas, assim com os olhos vestidos sempre pensará que vai de caminho direito e não faltará que chegue ao fim. 
Dependendo da jorna, diz-lhe o Deus dos animais, caso esse não seja como o outro. 
Mói na terra a lama que pestilenta argamassa as urinas e dejectos vão amassando caso tratasse de um ofício de fazer tijolo. 
O animal através do gingarelho dá força à roda que move o alcatruz abaixo e acima numa correia sem fim. 
Tonto ficaria também se fosse de raça de agoniar, 
Certo é que isso é invenção dos homens, má disposição dos fracos. 
Aquele odor que o sol nascido vai tratar de o cozer só ajuda às moscas. Coitado do bicho,
Sofrido a compasso mas se pensasse, diria, antes aqui a pisar o mijo e a merda do carreiro, que a puxar carga de arrobas por contar, monte abaixo e falta de força acima.
Não havendo água, seca a horta e mirram os pés de cultivo, 
Mas isso são coisas de outras artes, 
A mula só resta caminhar, 
À mula só resta pisar o que vai largando,
Houvesse pai que ensinasse os bichos destes trabalhos a desviar o passo.
E nisto estava a vida de um homem,
A fazer pela vida e a vida não desata.
No meio disto tudo acontece, a felicidade está no mosquêdo, a seu bel prazer, ainda podem dar uma volta do carrossel, desde que fora do alcance do chicote da cauda da mula

131 -

Renovam-se os dias debaixo de chuva e invernia,
Porém os campos continuam secos e feridos pelas gretas que descobrem os torrões que se desfazem em pó.
Diferente é o tempo que faz do tempo que imóvel não passa.
Enquanto isso...

130 -

Sonhar como será e o que poderia ser a sua amante
O desejo platónico e o ópio amortecedor da mortificação dos dias
Representação de uma quase verdade real

129 -

Subjaz meu corpo perscrutando do que da carne sobra, o espírito que sobrevoa e revive pela efémera ascensão, 
Acontece a paz na separação do sólido imóvel, alimento último do húmus da vaporização do saber e do sensível que agora esfuma ao tocar a copa das árvores.
Resulta impaciente,
O incómodo da contradição, 
O peso das ossadas desprendidas da carne pútrida, é valorizada pela sua existência degradada, no detrimento da imensidão do saber e poder de razão acumulada em vida.
De que vale a complexidade e substância do saber, se este desaproveitado nem às terras lodosas junta fértil que incremente vida renovada à natureza mãe inicial.
No momento em que tombou, sentiu que a massa corpórea que dava razão à sinalização da finitude da vida; seria a consumação do substantivo presente e de ligação pela consciência do derramado sumo fértil, e o saber de uma vida, o adjectivo findo não transmissível.
Até os ignorantes do saber são tão úteis quanto os doutos das referências da humanidade.
Assim o morto pode tombar e sentir-se útil,
Por via das dúvidas, se levante a lápide graciosa, alguém que se lhe lembre de esculpir o adjectivo.
Aqui jaz, fulano de tal, morreu e em vida produziu saber que na hora final não se lhe aproveitou saber guardar numa cápsula do tempo.

128 -

Não anoitece todos os dias para algumas pessoas,
Negrumes sentimentos que não descobrem alguma centelha de luz em liberdade,
Nem todos percebem que anoitece.

127 - como gostas da literatura?

Como gostas da literatura?
Adoro boas histórias, romances de época, diálogos carnudos, escritos em bold como as mulheres que se desejam, de letras trabalhadas e torneadas sem linhas direitas... Adoro histórias de mulheres que se podem descobrir e não querendo se deixam ler e entregar-se.

126 -

Um ensinamento oriental relata que se duas pessoas, cada uma com um pão, caminharem no mesmo caminho em direcção a se encontrarem e decidirem trocar os pães, seguirão o seu caminho carregando um pão.
Da mesma forma, se as mesmas duas pessoas, caminharem livres de objectos na direcção da outra e cada uma tiver uma ideia importante, se trocarem essa sua ideia pela do outro, ambas seguirão o caminho do destino mas com duas ideias.
A partilha e a aceitação.

125 - disseram que era

Disseram que
era Amor e não era mais que Encosto, 
era Vida e só Respirava, 
erabAlegria e não soltava um Sorriso, 
era para Sempre e foi Raramente, 
era Ananás e sabia a Abacaxi, 
era Tartaruga e apareceu um Cágado, 
era Leão e fez miau como o Gato, 
era Coelho e a Lebre fugiu, 
era Rã e o Sapo estava à espera de ser beijado, 
era Verdade e foi Mentira, 
era Lembrado e não era Recordação, 
era Mentira e foi a Verdade que mentia, 
era Sapo e a Rã ali estava fora da história, 
era Lebre e o Coelho apenas rondava a horta,
era Gato de companhia e assustava como um Leão feroz,
era Cágado de jardim e a Tartaruga tornara-se animal de estimação,
era Deus e não passou de uma miragem,
era Diabo e apenas actuava num cabaret,
era Norte mas a Bússola não se movia,
era Sul mas soprava das Montanhas em direcção ao Mar,
era Luz mas a Lâmpada tremia,
era Morte mas não tinha ainda Falecido,
era Funeral mas o Enterro antecedeu a cerimónia
era Casamento e foi o que se viu,
Disseram que era mas não Foi.

124 -

Quatro de muitas coisas que são irrecuperáveis
A palavra dita
A oportunidade perdida
O tempo gasto
A verdade traída

123 - morte falecer funeral enterro

A minha esposa morreu aproximadamente dez anos antes de falecer. Digo esposa, porque se depreende por essa relação um trato cerimonial resultante de um acto administrativo, recusando a terminologia de posse ou propriedade que advém da denominação "minha mulher" ou o "meu homem". 
Por conseguinte nem nunca foi minha, nem admitiria essa convenção de que resulta tomar conta de um objecto, neste caso uma pessoa.
Talvez se fosse um manequim de uma loja de roupa. Poderia ser minha, neste caso meu manequim. 
Ao objecto se propõe a sua ostentação como uma forma de estatueta, estar presente e visível. Se o objecto subir de categoria a equipamento ou máquina, requer funcionalidade e eficácia, na proporção da sua utilização e manutenção requerida.
A pessoa não é mulher ou homem de ninguém. A minha mulher, o meu homem. Isso não existe, a não ser por uma perturbação da moral.
A minha esposa morreu aproximadamente dez anos antes de falecer. Deixou de dar sinal de vida. Desceu ao nível de equipamento ou máquina, e sucessivamente deixou de ser eficaz e de manutenção complexa.
Emperrou e calcificou-se. 
Depois faleceu. 
Aquele tractor que era uma máquina comunitária da aldeia, um dia foi substituído por um novo, mais forte e potente, mais fácil de colocar ao serviço dos trabalhos. Ficou estacionado nas traseiras de um barracão, até que a ferrugem o foi mascarando com o entulho envolvente. Subiu-lhe a vegetação e o mato. Um dia passou a ser sem que se notasse um volume imperceptível. Deixou de ser útil para se tornar num peso morto inamovível.
Foi este o processo que decorreu entre a morte e o falecimento da minha esposa.
No dia seguinte ao enterro, porque o funeral é a cerimónia que se realiza durante o enterro, e o enterro é o acto de devolver à natureza, aquilo que em processo último da matéria de um corpo que se devolve à parte orgânica da terra, ninguém se mostrava inquieto ou desassossegado com a novidade da sua descida dentro de uma caixa de madeira acolchoada, no trânsito e trajecto do corpo, entre a luz que mal lhe aproveitou em vida, para a escuridão que não conheceria ao ser encaixada como uma ilha em decomposição rodeada de terra por todos os lados.
Alguém sussurrou, Foi melhor assim.
Neste entretanto dois coveiros, pessoas habituadas a fazerem buracos esteticamente perfeitos, na profundidade que dista da superfície, na largura e comprimento cúbico da caixa de madeira que irá ocupar, e sem esquecer o detalhe superlativo, da escolha do local. Esta terra é boa? Não pode ser barrenta porque atrasa a decomposição das partes moles do corpo. Se for areia, não tem bicho que lhe pegue. Chamarem de coveiros a estes cientistas multifacetados, é desrespeitoso e cínico para a classe.
De referir que eram coveiros da classe tradicional e romântica, adoptando a fórmula quatro por um. A largura da caixa de madeira seria multiplicada por quatro para dar o comprimento do corpo. 
Neste entretanto os dois coveiros, que normalmente, ligeiramente de parte, suficientemente escondidos para que sejam descobertos pelos olhares circundantes dos convivas, deixam que as famílias possam espargir as últimas lágrimas e urros de tristeza mais ou menos sentidos. Nesta situação, estranhamente, ainda a caixa acolchoada mal tinha transmitido o seu peso ao assentar no piso térreo e a escuridão começava a tornar forma cerrada, admirados, os dois especialistas ajustaram forças para despachar o serviço. Não estava ninguém para depositar os últimos torrões ao mesmo tempo que faltou ecoar o som seco tamborizado da tampa da madeira.
Não se estranha então... 
Quanto mais tempo dista o momento entre a morte e o seu falecimento, mais se perde o objecto da função da vida enquanto existência activa.
Morrer e falecer.
Funeral e enterro.
Na boca das pessoas que transformam os seus sentimentos e pensamentos em palavras, tudo é a mesma coisa e indissociáveis umas das outras.
Falta a quinta parte da estrela. O velório.
A maior parte das pessoas que morrem muito antes de falecer, conduzem a sua vida em função do adiamento do apagar da sua existência e conta deixada para trás.
Estranhamente, vivem em função do que apagam. Apagar memórias, apagar relações, apagar novidades que não deixam trazer melhores condições à existência, apagar...

122 -

Nunca te esqueças que só quando tentas levantar a cabeça é que sentes a força de quem te oprime. Até lá, farás parte do rebanho manso e silencioso, apelidado de bem comportado.
Para te revoltares, também terás de assumir e estar disposto a pagar com o sofrimento pela luta da tua liberdade.
De um comunista anónimo

121 - vida de casado

Adoro a vida dos homens CASADOS desta época... 🤣🤣🤣 
Uns preguiçosos.
Os professores fazem greve, os pilotos da TAP, da CP, dos barcos do Tejo, do Metro, os Oficiais de Justiça, os Estivadores e por aí fora, fazem greves e plenários a reivindicar melhores salários e condições de trabalho.
Em casa nem miam ou piam.
Fazem marcações para o sexo conjugal e recebem um expectativa de agendamento tal qual acontece com as consultas complicadas no Serviço Nacional de Saúde.
"- A senhora não pode marcar para mais cedo, é que ando mesmo aflitinho... 
- A shotora ainda não está a marcar para o ano que vem, em princípio vai ter que ir passando por cá e logo se vê."
E lá vai o artolas do esposo para casa resmungar, que este governo é uma vergonha, assim não vamos a lado nenhum, o país não anda para a frente e tal... 
Seus mansos.
Acordem. Há seguros de saúde para a especialidade. Depois de contratado o seguro e pagar a apólice, podem ir ao PRIVADO pá... Aquilo é quase de um dia para o outro, e ainda assim, sempre podem recorrer ao SNS para os casos mais complexos que não são previstos e cobertos pelo seguro. 😂

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

120 - Está ocupado?

A meu lado há sempre um lugar vazio.
Se bem que, se o lugar tivesse vida, olharia para mim, como quem olha para um abusador.

119 - Livraria

. Bom dia. Procuro um livro com final feliz. O que é que me aconselha?
. Bom dia. Uma história de amor, por exemplo?
. Não necessariamente, até pode ser um livro técnico, quero é um final feliz...
. Deixe ver, isso é tão pouco específico, tem algum autor preferido?
. Oh minha senhora...
. Já sei, saiu este há poucos dias e tem saído muito...
. E de que se trata?
. É uma história sobre um reencontro de duas pessoas que há muito tempo não se viam e um deles regressa à cidade onde ambos cresceram, apaixonam-se mas ele está às portas da morte com uma doença daquelas.
. Ora bolas, e você acha isso um final feliz???
. Pelo menos é romântico e o autor vende muito.
. Desde quando é que o romantismo traz felicidade? Que estupidez, até podia recomendar um livro de palavras cruzadas e sudoku.
. Deveras. Mas que final feliz tem esse tipo de livros?
. Seguramente traz as soluções dos enigmas, não?!!!
. Se calhar é melhor chamar um outro colega para o atender...
. Isso, faça isso, se calhar você nem para pesar batatas serve.
(Joaquim, Joaquim, podes atender este senhor por favor)
. Bom dia, em que lhe posso ser útil?
. Bom dia. Procuro um livro com final feliz. O que me aconselha.
(Joaquim já se tinha apercebido do diálogo com demasiadas arestas bicudas. Aproxima-se e olha para o cliente, desloca-se três passos em direcção a uma estante, volta a olhar o cliente. Uma pessoa mais gasta do que a idade avançada aparenta. Daqueles que anda com fotocópias importantes dentro de um saco de plástico que o segura pela asas. Com os olhos na ponta dos dedos da mão direita, percorre a terceira e quarta prateleira, mais três passos à esquerda e continua com o mesmo trajecto e, isso, tira daqui um livro. Capa cinza em degradê como se a tinta estivesse a escorrer com letras a dourado. Jim A. S. Farshigt "A Morte é a Salvação")
. Aqui tem. Aconselho este. Não me pergunte o enredo. Leia e verá o quão feliz é o final.
. A morte é a salvação, como é que a morte pode ter um final feliz??
. Lá está. Se lhe contar a história, você continuará a procurar finais felizes para compensar a vida miserável que leva.
. Maravilha. Pode embrulhar se faz favor?
. Claro, certamente que sim. Mas é para oferecer?
. Sim, amanhã faço anos e quero me oferecer uma prenda...
. Ora bolas...