A minha esposa morreu aproximadamente dez anos antes de falecer. Digo esposa, porque se depreende por essa relação um trato cerimonial resultante de um acto administrativo, recusando a terminologia de posse ou propriedade que advém da denominação "minha mulher" ou o "meu homem".
Por conseguinte nem nunca foi minha, nem admitiria essa convenção de que resulta tomar conta de um objecto, neste caso uma pessoa.
Talvez se fosse um manequim de uma loja de roupa. Poderia ser minha, neste caso meu manequim.
Ao objecto se propõe a sua ostentação como uma forma de estatueta, estar presente e visível. Se o objecto subir de categoria a equipamento ou máquina, requer funcionalidade e eficácia, na proporção da sua utilização e manutenção requerida.
A pessoa não é mulher ou homem de ninguém. A minha mulher, o meu homem. Isso não existe, a não ser por uma perturbação da moral.
A minha esposa morreu aproximadamente dez anos antes de falecer. Deixou de dar sinal de vida. Desceu ao nível de equipamento ou máquina, e sucessivamente deixou de ser eficaz e de manutenção complexa.
Emperrou e calcificou-se.
Depois faleceu.
Aquele tractor que era uma máquina comunitária da aldeia, um dia foi substituído por um novo, mais forte e potente, mais fácil de colocar ao serviço dos trabalhos. Ficou estacionado nas traseiras de um barracão, até que a ferrugem o foi mascarando com o entulho envolvente. Subiu-lhe a vegetação e o mato. Um dia passou a ser sem que se notasse um volume imperceptível. Deixou de ser útil para se tornar num peso morto inamovível.
Foi este o processo que decorreu entre a morte e o falecimento da minha esposa.
No dia seguinte ao enterro, porque o funeral é a cerimónia que se realiza durante o enterro, e o enterro é o acto de devolver à natureza, aquilo que em processo último da matéria de um corpo que se devolve à parte orgânica da terra, ninguém se mostrava inquieto ou desassossegado com a novidade da sua descida dentro de uma caixa de madeira acolchoada, no trânsito e trajecto do corpo, entre a luz que mal lhe aproveitou em vida, para a escuridão que não conheceria ao ser encaixada como uma ilha em decomposição rodeada de terra por todos os lados.
Alguém sussurrou, Foi melhor assim.
Neste entretanto dois coveiros, pessoas habituadas a fazerem buracos esteticamente perfeitos, na profundidade que dista da superfície, na largura e comprimento cúbico da caixa de madeira que irá ocupar, e sem esquecer o detalhe superlativo, da escolha do local. Esta terra é boa? Não pode ser barrenta porque atrasa a decomposição das partes moles do corpo. Se for areia, não tem bicho que lhe pegue. Chamarem de coveiros a estes cientistas multifacetados, é desrespeitoso e cínico para a classe.
De referir que eram coveiros da classe tradicional e romântica, adoptando a fórmula quatro por um. A largura da caixa de madeira seria multiplicada por quatro para dar o comprimento do corpo.
Neste entretanto os dois coveiros, que normalmente, ligeiramente de parte, suficientemente escondidos para que sejam descobertos pelos olhares circundantes dos convivas, deixam que as famílias possam espargir as últimas lágrimas e urros de tristeza mais ou menos sentidos. Nesta situação, estranhamente, ainda a caixa acolchoada mal tinha transmitido o seu peso ao assentar no piso térreo e a escuridão começava a tornar forma cerrada, admirados, os dois especialistas ajustaram forças para despachar o serviço. Não estava ninguém para depositar os últimos torrões ao mesmo tempo que faltou ecoar o som seco tamborizado da tampa da madeira.
Não se estranha então...
Quanto mais tempo dista o momento entre a morte e o seu falecimento, mais se perde o objecto da função da vida enquanto existência activa.
Morrer e falecer.
Funeral e enterro.
Na boca das pessoas que transformam os seus sentimentos e pensamentos em palavras, tudo é a mesma coisa e indissociáveis umas das outras.
Falta a quinta parte da estrela. O velório.
A maior parte das pessoas que morrem muito antes de falecer, conduzem a sua vida em função do adiamento do apagar da sua existência e conta deixada para trás.
Estranhamente, vivem em função do que apagam. Apagar memórias, apagar relações, apagar novidades que não deixam trazer melhores condições à existência, apagar...
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