segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

156 - as pernas e os braços

As pernas são pessoas guiadas pelos pés que sentem urgências.


As pernas são pessoas guiadas pelos pés que sentem urgências. Os braços são outras pessoas, muito diferentes das pessoas que são pernas, ou melhor dizendo, das pernas que são pessoas. Essas pessoas mais acima, assim chamados de braços, são agitados pelas suas mãos que acenam constantemente a algo ou alguém.

Não quero dizer que a urgência dos pés e a agitação das mãos façam delas pessoas inimigas. Certo que, não raras vezes, demasiadas até, os pés vão na direcção contrária do aceno das mãos, e as mãos estalam os dedos sem que os pés se importem em se dirigir para lá.

Sobra a isto, que os cotovelos e os joelhos são em cada uma dessas pessoas o factor da harmonia. Não foram feitos para nada, a não ser, como elemento essencial para dobrar as vontades contraditórias.

Aqueles pés que ali vão a correr, são ajudados pelos cotovelos dobrados e que assim ajudam as mãos a articular o aceno em sentido contrário.

Até parecem instrumentos musicais de uma orquestra amadora, mas que aprende conjungar sons em resposta aos sons perguntados. 

Olha agora mesmo, aqueles belos joelhos que flectiram a assim permitiram que os braços se levantassem e agitassem num momento de esquerda direita, repetido numa exaustão, sem que os pés fizessem distorcer a vontade das mãos.

Seguramente que ali não se percebe o quão sincronizado conseguem fazer parecer.

Um dia inventaram que entre o andar de baixo, as pernas, e andar de cima, os braços, deveria ser construído um lugar fronteira com o intuito de acomodar as vontades destas pessoas e tornar conciliadora a vida constantemente atribulada.

Assim foi construída, numa posição intermédia e em ligação com as pernas pessoas do andar de baixo e os braços pessoas do andar de cima, um espaço vazio chamado barriga.

Era para ali na barriga que tudo confluia. Da avareza das mãos, às solas dos pés gastas e roídas, passando pela necessidade de reparar as meias articulações dos joelhos e cotovelos, ali na barriga se juntava a nuvem das necessidades.

Os braços e pernas, libertas de preocupações, sentiram a cada ano que passava, estavam menos activos. Os pés menos urgentes e as mãos menos agitadas, ao passo que as dobras dos cotovelos e dos joelhos raramente se articulavam.

Foi feita uma reunião de urgência e emergência entre os representantes do piso inferior e do superior, à qual convocaram a barriga.

Passaram dias e dias seguidos em discussão, em acusações e atribuição de culpas. Uns porque assim e os outros porque assado. Pior, aqueles porque cozido e os demais porque frito. Nisto, a barriga, pesada e cansada, pediu a palavra. Aquela voz de onde saía através de um eco, agora comunicava quase por murmúrios imperceptíveis. A custo e a cada das partes, lá se conseguiu fazer entender. Desde que a barriga tinha sido criada, as pernas e as mãos, despejavam todas as coisas boas e más lá para dentro, sem cuidar de como se sentiria a barriga.

Assim a barriga, primeiro engordou, depois adoeceu, depois inchou tanto que mal conseguia continuar a receber o que para lá era despejado.

Assustador, disse as pernas. A culpa é desses braços nervosos.

Maquiavélico, respondeu os braços. Isso já se vê que é obra dessas pernas, que não sabem por onde andam.


A cabeça

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