segunda-feira, 30 de outubro de 2023

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O Ser Humano passou de TER perguntas para FAZER a fazer todas as perguntas.
Depois, assumiu procurar respostas para as perguntas que colocava. Das respostas gerou dúvidas, das dúvidas criou outras perguntas.
De nómada a produtor. De produtor à criação de riqueza para um mínimo deles assentes numa superioridade corporativa.
A tecnologia trouxe novas dimensões e dinâmicas de convivência entre sociedades locais que ultrapassaram as suas fronteiras históricas.
O Ser Humano incorporou o sentido de Humanidade. Alargou horizontes. 
Ir mais longe, mais alto, mais profundo e eficientemente no que apelidou de evolução e conquistas. Conquistas sobre outras comunidades apelidadas de tribais e pouco evoluídas. 
Entretanto, as máquinas e as sucessivas transformações tecnológicas, criaram eficácia e rentabilidade dos processos produtivos. Geramos trabalho para uma mínima redistribuição de ganhos e maximização de fluxos de capitais.
A Humanidade passou a saber onde se encontra o Conhecimento, catalogado e devidamente condicionado na sua demonstração. O Ser Humano sabe onde está a informação em forma de anúncio e rascunho. Deixou de verificar fontes porque não consome dados. São os fluxos de dados que reorientam as pessoas. Para a Humanidade importa saber que determinada situação existe e que está acessível a alguém. Esse alguém que trate de interpretar as variantes das verdades construídas por bases não identificáveis.
A mestria da Ilusão. A preguiça da mordomia com que a chegada da expansão da Inteligência Artificial, vulgarizou o sedentarismo dos bípedes entregues à entrada de uma nova e sofisticada caverna das ideias difusas. Sócrates e Platão tinham razão há mais de dois milénios.
Somos absolutamente o produto de uma coisa híbrida inserida no circuito de um círculo gerador de humanóides, seres de carne ainda sem as protecções exteriores ou interiores de um esqueleto mecânico, mas que já se nos orienta como cobaias de uma outra forma de vida.
Neste entretenimento, um entretanto temporal, o Homem se tornou numa espécie capaz de prever e decidir a sua extinção num processo de destruição dos mecanismos dos equilíbrios do planeta Terra. Somos a espécie invasora e predadora que poderia perfeitamente simular a chegada de seres habitantes de outras paragens estrelares.
A ficção literária e cinematográfica já nos apresentou todos os cenários. Basta que a vida, real e terrena, consiga copiar a ficção.
Vamos morrer todos. Todos. Todos.

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O Lenhador que tinha a sensibilidade de um... 
... o Apicultor com a destreza de manejador de rebanhos de Abelhas

182

O Adérito esteve na casa da sua mais que tudo Clotilde a fumar umas ganzas, potentes, daquelas mesmo de fazer revirar os olhos e ver os unicórnios a dar umas berlaitadas nas sereias.
Terminado o serão, lá se despediu, sem que antes tivesse vestido o que despiu e retornou a casa.
Truca Truca, beijo beijo, coise coise, e veio de elevador até à garagem.... Uiiii como ele estava feliz e na cloud das nuvens.
Ao longe começou a carregar no botão do comando da sua viatura. Tac Tac, onde raio se meteu o carro, Tac Tac, lá está ele.
Entrou no carro e susto de morte.
Ouviu. 
- oh Artolas tu tens a certeza que vais conduzir nesse estado?
- eiiii quem está aí?
- quem está aí?? Olha como está o menino!?
O Adérito baixa o vidro. Abre a porta e põe-se a fazer o rastreio visual de quem procura alguma coisa sem que saiba o que procura.
- aparece lá o coiso!!!
- oh Antunes, achas que podes conduzir?
- eu não sou Antunes, sou Adérito, e o que é que tu tens a ver com isso?
Neste entretanto repara que em cima do carro está um pombo a olhar para ele.
- uiii que o menino já não sabe o nome que tem. Como tu estás...
- eu não estou nada e não tens nada a ver com isso. Sai daí antes que te atropele.
- quando achas que é possível a tua consciência ser representada pela voz e presença de um pombo, deixo à tua consideração a interpretação do nível de lucidez com que vais chegar a casa.
Neste entretanto, confuso e tentando reavivar o nível de sobriedade, um carro acende as luzes e faz sinal de ignição. Com o motor a trabalhar, sai de dentro a Gertrudes, esposa do Antunes.
- então Antunes, então, sim senhora, mais uma noite de sexo, álcool e drogas e acabas a falar com um pombo. Tu não tens emenda.
- ora bolas, lá está ela outra vez a sair do sarcófago

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Um pequeno acidente de trânsito do qual resultaram danos pouco expressivos.
Desentendimento entre os condutores levou a uma enorme discussão na via pública.
Recusaram trocar dados para apresentarem a respectiva participação de sinistro nas suas companhias de seguros.
Ameaças física e ofensas verbais.
Alguém telefona para o posto da guarda. De lá informam que tomam conta da ocorrência mas que de momento não têm qualquer viatura disponível para se dirigirem ao local.
Enquanto aguardam e geram-se outros focos de desentendimento porque as viaturas estão a dificultar a circulação do trânsito naquele entroncamento.
Quanto mais crescem as filas de trânsito acumulado maior é a tensão entre os intervenientes.
Nova chamada para a guarda e a mesma resposta. Resolvam entre si ou aguardem, sem que seja possível determinar a chegada dos agentes ao local.
Das ameaças físicas e agressões verbais, passam aos actos.
Chapadas, meios sopapos e murros transviados. Gritos à solta.
Uma confusão dos diabos.
Um deles cai no chão e bate com a cabeça no ressalto do passeio. Fica inanimado.
O outro de mais idade, sente-se mal e desmaia.
Da assistência presente que assiste ao aparato alguém telefona para os bombeiros.
Sendo um caso de acidente na via pública, aconselham ligar para o 112. "A nossa central telefónica é antiga e não reencaminha as chamadas do exterior. Lamento." Ouve-se. 
Da emergência médica redireccionam para a polícia que identificando o local, informa que faz deslocar a viatura da patrulha e que volta a chamada para a secção do atendimento médico.
Enquanto estão em linha é accionada uma viatura do INEM.
Estão duas pessoas, uma no chão inanimada e outra combatida e já regressada à vida. Esta diz que já tem história de dois ataques cardíacos e um AVC. O senhor mais velho teme que lhe ocorra algo terminal. 


O hospital mais próximo está a 48 quilómetros de distância, daqui está prestes a sair uma ambulância com a equipa médica apropriada para esta situação. Aguardam só que o hospital onde a viatura e a equipa se encontra, possa receber a maca com que transportaram um sinistrado entretanto falecido, vítima de um acidente de trabalho.
Do atendimento telefónico do INEM vão dando algumas instruções para que os populares locais que se juntaram neste acidente possam prestar alguma assistência para melhorar a comodidade das vítimas.
Uma está sentada e a outra com pulso fraco.
Passados perto de 28 minutos chega a toda a fúria uma viatura da polícia. Com as luzes a serpentear um dos agentes, o acompanhante do motorista, sai e começa a gritar para que os populares se afastem do local.
Uma senhora com o telemóvel ao ouvido é bruscamente afastada e deixa cair o aparelho no chão. A chamada que estava a ser realizada para o INEM perdeu-se e reclama com o agente de forma furiosa. Repara que tem o visor do aparelho partido e começa a esbracejar com ele. Exige o seu nome e número de identificação para que possa apresentar queixa.
O agente motorista apercebendo-se da reacção da senhora, ameaça-a com ordem de prisão por obstrução da prestação de serviço por parte da autoridade no local.
Um homem de meia idade com olheiras profundas grita insanemente. O homem está morto, não vêem que está roxo, o homem morreu.
Alguém liberta a camisa do homem e prepara-se para fazer as manobras básicas de suporte básico de vida.
Um dos agentes diz para o outro ir à mala da viatura buscar o desfibrilhador. Dá 3 passos de corrida e estanca o passo. "Não temos, estava avariado."
Aquele homem de joelhos a fazer as manobras, grita que está morto, está morto. Alguém diz tente, tente, e os bombeiros que não aparecem quando são precisos.
Não há reacção.
Aglomerado de gente entremeia com carros que pretendem seguir marcha.
O agente motorista leva de parte o interveniente do acidente que também se tinha sentido mal.
Ouvem-se cada vez mais estridentes sonoros avisos da chegada da ambulância.
A mulher que estava em contacto com o INEM continua a dizer que vai fazer queixa dos polícias que isto não são maneiras de tratar as pessoas. Não somos cães e nem os cães são enxutados assim.
Chega a ambulância perto do local e a fila de carros que dificilmente conseguem contornar o espectáculo criado pelas duas viaturas, fica meio parada na repetição das sirenes.
Está ali. Já chegaram. O homem está morto.
O outro homem acerca-se do carro. O polícia diz-lhe para lhe apresentar os documentos e não sair de dentro da viatura. Mantenha-se aí.
Era o que faltava eu não estou preso.
Perante a reacção, o polícia dá ordem para não entrar no carro e acompanhá-lo à viatura policial.
Num arremesso de vida, ele entreabre a porta direita e saca do porta luvas um pequeno revólver. Grita "se não foi a guerra que me levou não vão ser vocês" e tanto aponta a arma na direcção das pessoas como do polícia e da testa dele.
A equipa do INEM neste entretanto já descarregou duas vezes a máquina a ver se o ressuscita. Prepara-se para a terceira e última. Nada. O homem está morto. Roxo e com marcas de sangue no asfalto.
"Está morto" diz o médico para o polícia que mantém a arma levantada em paralelo com o braço esquerdo também em riste e ao alto. "Largue a arma, largue a arma homem, não faça nenhuma asneira, não lhe basta o que aconteceu."
"Ele é o culpado" e mantém a boca do revólver no lado direito da testa.
Outro acidente. Um condutor que se assusta ao ver as armas. O do polícia ao alto e a do outro homem. Bateu de lado num carro que vinha de frente a tentar contornar.
Ouve-se barulho no rádio do carro da polícia.
"Quieto"
Um estalo expressivo. Uma cara inexpressiva. Um corpo caído no chão. É o segundo. O homem suicidou-se.
O polícia corre para ele. O outro no rádio do carro pede reforços. Um morto e um suicida.
Estupefacção.
O motorista da ambulância do INEM vai a caminho de ir buscar um lençol. Entra pelas portas abertas por onde sairia a maca se já fossem em marcha de urgência para o hospital que fica a 48 quilómetros de distância.
No momento em que coloca um pé fora, retorna para dentro. São dois os lençóis agora os necessários.
Entrega um deles ao polícia e pergunta se podem tapar o que morreu no chão.
Um aceno de cabeça.
Mais sirenes. Agora uma mota com uma lâmpada rotativa atrás.
É graduado. Os dois polícias já de si não equiparados na mesma patente fazem continência à chegada deste agente.
Conferenciam.
Não os 3. O de menor patente remete-se a suster a presença dos populares para não se aproximarem dos corpos e não contaminarem o local de provas a recolher.
Da conferência resulta uma comunicação para a central e uma participação para a polícia criminal. Há arma de fogo, eles têm que ser chamados. O médico legista. O homem que autoriza a remoção dos corpos da via pública.
O trânsito começa a fluir com a anormalidade possível dentro das circunstâncias.
Chega uma equipa de televisão.
Ouve-se "já cá faltavam estes, umas víboras, cheirou-lhes a sangue". Câmara apontada aos corpos e à disformidade com que os corpos caíram e assim restam.
O médico requere autorização superior para abandonar o local. O seu superior fala pelo telemóvel com o recém chegado graduado.
Um cumprimento de cortesia e ouvem-se fechar as portas da ambulância. Menos um entrave para o trânsito. Assim fica uma esquina mais liberta.
Uma senhora de idade passa de carro e olha fixamente para os corpos. Baixa os olhos e faz o sinal inexpressivo da cruz. Quando levanta os olhos travou bruscamente. Dois rapazes iam ali mesmo ficando debaixo do carro. "abre os olhos sua..." Ai meu Deus, pensou ela.
O agente graduado, já se monta na sua mota de serviço. Deixou indicação. Quando os da perícia chegarem digam-me de imediato. O médico legista está fora da cidade. Saiu para um acidente ferroviário. Um atropelado pelo comboio rápido.
Não. Não se sabe quando é que o senhor Doutor chegará aí.
Começou a pingar quando o graduado saiu com a mota. Claro. Um graduado não anda à chuva de mota. Há que garantir a sua segurança.
Alguém que se prepara para abandonar o seu posto de mirone diz "este país é uma merda, agora ficam aí esses pobres coitados à chuva".
À chuva estou eu, eles estão mortos. Os mortos não apanham chuva. Pensou isto o agente de menor patente. Ainda na semana passada esteve em greve, por melhores salários e melhores condições de trabalho. Nem um impermeável dão aos homens.
Chove copiosamente.
O rasto de sangue do primeiro morto já se misturou com os óleos e sujidade da estrada.
Triste cenário.
Os carros passam, abrem as janelas à passagem do local para que os ocupantes possam dar aquela mirada sinistra. Uns poucos munidos de chapéu de chuva ainda se encontram em redor. Tirando isso só os que do prédio em frente estão à janela.
O que é que há para ver.
Um carro com 3 ocupantes faz sinal de luzes e uma apitadela para os dois polícias no local.
Dois inspectores. O outro coisa qualquer de importante.
A repórter e o seu câmara apontam-se rapidamente para os chegados. São os inspectores. Solicita explica que estes agentes são qualificados para recolherem as provas do crime.
Crime? Qual crime.
Isso é o que se vai apurar, de momento estamos a fazer a perícia regulamentar para estas circunstâncias. Temos a lamentar duas vítimas mortais. Uma ao que tudo indica por força de suicídio e a primeira só a autópsia poderá esclarecer.
Não. Não podemos neste momento sem qualquer tipo de uma investigação apurada e circunstanciada com as provas periciais recolhidas, tirar por agora qualquer resultado definitivo.
Não se sabe a que horas chega o médico legista.
Não pára de chover.
Travagem brusca e carro que se sente derrapar na proximidade deste cenário.
Luzes acesas, limpa pára-brisas ligado. Sai do banco de trás uma mulher aos gritos. Da sua frente um homem novo. Do lado do condutor uma mulher de gabardina preta e de saltos.
Esposa, filho e nora, por esta ordem. Pertencem ao suicida.
Os dois polícias correm para eles. Os dois agentes que recolhem provas períciais são alertados pelo rebuliço.
Comoção extrema. Aquele homem idoso tinha saído do escritório para ir buscar os dois netos que estariam por aquela altura a sair da escola.
Matou-se, como?
O primeiro morto não tem ninguém a caminho.
No carro não se lhe encontra carteira. O telemóvel tem uma dupla verificação de acesso. Sem código não existe a elementar forma de contactar alguém próximo, familiar ou relativo a quem a autoridade possa comunicar a morte.
Mas não tem carteira.
Admiração. Um dos agentes diz que depois da chegada deles ninguém mexeu ou se aproximou de qualquer das viaturas.
Muito bem. Os agentes estão absolvidos de qualquer má prática na prestação de serviço em honra da causa pública, que é para isso que pagamos os nossos impostos.
O agente menos graduado diria que são os impostos que lhe..., que lhe lixam o ordenado.
Mais faltava esta. O carro é alugado. O canhoto, duplicado da requisição do aluguer, está praticamente irreconhecível. Mal passou para a cópia.
Mais um que vai para a gaveta até que alguém se acuse.

180

Entre a chuva que se dissolve em gotas de água, o barulho residente do mar revolto, do vento arrastando, sinto esboroar a minha capacidade de pensar. Todos os pixeis deste quadro me distraem e retiram o foco do que para aqui me trouxe... E mesmo assim a paisagem catastrófica é idílica.

179

Sobre o ABSURDISTÃO.
Dá que pensar o absurdo de horas que consumimos com imagens despudoradas de qualquer censura e protecção, das vítimas e dos telespectadores. O desgaste emotivo e cerebral que se traduz num amortecimento e insensibilidade perante a tragédia das imagens, torna-nos pasto fértil para uma vivência de desinteresse e comodismo.
O pivot alerta, as imagens que se seguirão poderão ferir a sensibilidade dos telespectadores. Como assim poderão? Um corpo executado em directo, vejam este que ainda mexe, as bombas que vêm a caminho, aponta a câmara para aqui, ainda cheira... 
No início de 2020 com a estranheza da distopia que abalou o mundo no sentido regressivo dos fusos horários, conhecemos a realidade dos corpos sepultados dentro de sacos pretos e as salas de emergência hospitalar em puro estado de ebulição.
Na fatídica quinta feira, dia 24 de Fevereiro de 2022, Kiev e outras cidades ucranianas acordaram sob bombardeamento, replicando momentos vividos em outros tempos e que a memória faz reavivar o som de fuga em alerta das sirenes. Tinha regressado em regime televisivo sem intervalo, alerta, alerta, última hora, aqui vejam aqui neste canal o que mais horror e horrível poderá assistir, informação em directo..., toneladas e vagões de corpos amontoados a céu aberto, uns por reclamar outros sem se dar por isso.
Agora, num planeta já de si em catástrofe, obriga-se a juntar em trincheiras de claques, defensores e barricados em verdades não resolvidas e sucessivamente reescritas pela história. Uns de um lado, outros nos seus antípodas, os corpos voltam a estar a céu aberto, tantos por reclamar, outros sem dar por isso.
Nos estúdios de televisão em directo, correspondes recolectores de ávido sangue, comentadores do mais especialista era impossível, aqui para dar a sua opinião, que sendo sua se pretende científica e informada. Mais bombas e milhares de objectivas apontadas ao horizonte da desgraça. No estúdio alguém pensa aquilo que todo o mundo quer observa tem vergonha de assumir - e a guerra nunca mais começa. Se não acontece nada ainda mudo para o Gouxa ou para o Grande Irmão. Caro telespectador não faça isso. Espere temos sangue gota a gota para saciar a sua vontade.
Afinal a guerra ainda é pior que as raríssimas cenas de sexo mal apanhadas..., porque isso sim, haja pudor, era o que faltava dois homens ou duas mulheres a roçarem as carnes lânguidas e excitadas.
Ouvem-se as sirenes em Gaza e em Telavive. Será eco?

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Uma mesa redonda com seis cadeiras com uma toalha de folhos de renda.
Uma cadeira onde estou sentado, contrasta com as restantes desocupadas e inclinadas para a mesa. Em cima da mesa está um copo com uma vela entretanto apagada por força da janela que se fechou. Um cinzeiro de madeira com o receptáculo da cinza em metal, oxidado pelo uso e passar do tempo. Ao lado está uma caixa de cigarrilhas passadas pelas circunstâncias do mofo que lhe pegou. Desconfio que os fósforos perderam a força e a cabeça avermelhada não passa de uma capa a qual não pega ignição.
À frente de cinzeiro está uma copo de vidro, baixo e de aspecto pesado. Não serve para beber água, seguramente é o ideal para uma boa rodada de degustação de uma qualquer bebida espirituosa de baixo gabarito. A um palmo do copo vazio e que pelos torneados ornamentais não se percebem as marcas das dedádas ou dos lábios que ali encostaram por momentos, está uma garrafa de vidro transparente, de feitio amolgado como se de uma pega tratasse. No fundo está depositado o pé gerado pela substância que ali restou até às últimas gotas.
Para já temos uma mesa com cinco lugares vazios e cujas cadeiras indicam que foram desocupadas. Uma janela que foi fechada e agora deixa ser tapada por um cortinado leve que a cor se tornou encardida. Sobra o bebida, o tabaco e a vela apagada.
Sobra uma caixa em forma de pequeno baú, onde a madeira escurecida é rematada por filamentos de metal a tapar a ornamentação dos encaixes toscos com que foi construída. No topo da tampa arredondada, existiu uma pequena pega e que agora perdeu lugar. Está aberta na totalidade, escancarando o seu conteúdo. Lá dentro uma caixa de cartão, tudo condizente com algo relacionado com comprimidos.
O ocupante da única cadeira em utilização sabe mas não comentou, aqueles comprimidos foram roubados da casinha onde se guardam os haveres e utensílios destinados aos animais daquela quinta.
Agora sabemos que o espaço se encontra num ambiente rural e bucólico. Haverá animais, cães e gatos de certeza, daqueles que se habituaram ali a viver sem que para tal tivessem sido adoptados para tal. Para haver uma casinha de arrumos, seguramente é ambiente de trabalho e tratamento de gado, cavalos até podem ser considerados.
Aquela caixa de comprimidos que está guardada no baú aberto, é um potente remédio para as doenças de coração dos animais de grande porte. Aqui chegamos aos cavalos.

177

Quando a saudade era grande, aquele homem de bainhas por descer, timidamente mostrava indiferença ao percorrer os corredores luminosos dos centros comerciais da sua cidade.
Mal disfarçado, simulava interesse ao entrar em lojas que compunham outras necessidades de nenhuma urgência e vagueava sem tempo contado, até que se dirigia a uma das perfumarias, com o cuidado de não repetir a visita.
Sentia a indecência de abusar do tempo das funcionárias para proveito próprio e a elas desnecessário. 
De qualquer forma, balbuciava o nome do perfume que alegadamente alguém lhe teria sugerido comprar para oferecer à sua esposa. Idílic for Women.
Assim se chamava aquela essência de remorsos, recordações e memórias. 
Umas vezes a timidez o traía ao dizer o nome, outras era mesmo o inglês arcaico que lhe torcia a voz.
O caso só ficou registado porque na visita passada, este homem, foi desmascarado.
A jovem senhora que o atendia, quase fardada de hospedeira sofisticada das mais conceituadas companhias de aviação, deduziu por intuição a presença de um meliante.
Deu uma tira cartonada impregnada do perfume a cheirar, depois torceu o olhar, reforçou a dose pulverizada e voltou a oferecer ao homem que está a atender para que este comprove a luxúria desta fragrância.
Momentaneamente tocaram olhares. Ela levantou o queixo. Ele se pudesse morria.
O corpo dele embriagado não estava preparado para morrer.
Ela não tinha o dedo acusador em riste.
Tem saudades, perguntou ela.
As lágrimas começam a descer com a urgência de um rio que corre para a foz.
Desculpe. Desculpe. Naturalmente balbuciado. 
A sua esposa... 
Era o perfume da minha senhora, morreu vai fazer um ano, era o perfume dela de sempre e o meu amor. Nunca lhe conheci outro perfume e coitadita, as roupas já estão a perder o cheiro... 
Compreendo. 
A funcionária baixou-se e abriu uma das portinholas daquela secção da estante e tirou um pequena caixa branca. 
Tocou-lhe numa mão e na outra depositou a amostra daquele perfume. 
Quando faltar passe por aqui, venha ter comigo, não se preocupe que não necessita de dizer nada. Pode ser um dia alguém também sinta a minha falta como o senhor sente da sua senhora. 
E as lágrimas que ele antes deixava cair, eram as que faltavam nascer na vida daquela mulher. 
Em casa, ao lado da vela acessa que velava a fotografia, passou a ficar aquele frasquinho de perfume.

176

A quem criticar a minha viagem, emprestarei os meus sapatos;
A quem duvidar da minha fidelidade, lhe pousarei as mãos no rosto;
A quem não me ouvir o que grito, lhe olharei por dentro dos olhos;
A quem contestar os meus pensamentos, lhe emprestarei a roupa que levarei vestido. 
Se for devastador, que seja eterno;
Se for demolidor, que abane as fundações;
Se for avassalador, que me sintam o bater do sangue enquanto encharca o coração. 
Gritaram que era amor como nunca tinha sido;
Sufocaram de agonia de tantas promessas por realizar;
Trataram de fazer parecer o que era por si só nunca antes realizado ou experimentado.
Entretanto aproximaram-se da minha sombra e essa era quente;
Quando chovia copiosamente, as gotas evaporavam-se a meio caminho;
Ameaçava fazer tornados e tempestades onde o vento alguma vez se sentiu;
Mas quando os trovões e os relâmpagos ribombavam, aí sim, alguém disse, se é para ser tudo assim, então que seja no teu colo.
E ele aprendeu a amar...