segunda-feira, 30 de outubro de 2023

181

Um pequeno acidente de trânsito do qual resultaram danos pouco expressivos.
Desentendimento entre os condutores levou a uma enorme discussão na via pública.
Recusaram trocar dados para apresentarem a respectiva participação de sinistro nas suas companhias de seguros.
Ameaças física e ofensas verbais.
Alguém telefona para o posto da guarda. De lá informam que tomam conta da ocorrência mas que de momento não têm qualquer viatura disponível para se dirigirem ao local.
Enquanto aguardam e geram-se outros focos de desentendimento porque as viaturas estão a dificultar a circulação do trânsito naquele entroncamento.
Quanto mais crescem as filas de trânsito acumulado maior é a tensão entre os intervenientes.
Nova chamada para a guarda e a mesma resposta. Resolvam entre si ou aguardem, sem que seja possível determinar a chegada dos agentes ao local.
Das ameaças físicas e agressões verbais, passam aos actos.
Chapadas, meios sopapos e murros transviados. Gritos à solta.
Uma confusão dos diabos.
Um deles cai no chão e bate com a cabeça no ressalto do passeio. Fica inanimado.
O outro de mais idade, sente-se mal e desmaia.
Da assistência presente que assiste ao aparato alguém telefona para os bombeiros.
Sendo um caso de acidente na via pública, aconselham ligar para o 112. "A nossa central telefónica é antiga e não reencaminha as chamadas do exterior. Lamento." Ouve-se. 
Da emergência médica redireccionam para a polícia que identificando o local, informa que faz deslocar a viatura da patrulha e que volta a chamada para a secção do atendimento médico.
Enquanto estão em linha é accionada uma viatura do INEM.
Estão duas pessoas, uma no chão inanimada e outra combatida e já regressada à vida. Esta diz que já tem história de dois ataques cardíacos e um AVC. O senhor mais velho teme que lhe ocorra algo terminal. 


O hospital mais próximo está a 48 quilómetros de distância, daqui está prestes a sair uma ambulância com a equipa médica apropriada para esta situação. Aguardam só que o hospital onde a viatura e a equipa se encontra, possa receber a maca com que transportaram um sinistrado entretanto falecido, vítima de um acidente de trabalho.
Do atendimento telefónico do INEM vão dando algumas instruções para que os populares locais que se juntaram neste acidente possam prestar alguma assistência para melhorar a comodidade das vítimas.
Uma está sentada e a outra com pulso fraco.
Passados perto de 28 minutos chega a toda a fúria uma viatura da polícia. Com as luzes a serpentear um dos agentes, o acompanhante do motorista, sai e começa a gritar para que os populares se afastem do local.
Uma senhora com o telemóvel ao ouvido é bruscamente afastada e deixa cair o aparelho no chão. A chamada que estava a ser realizada para o INEM perdeu-se e reclama com o agente de forma furiosa. Repara que tem o visor do aparelho partido e começa a esbracejar com ele. Exige o seu nome e número de identificação para que possa apresentar queixa.
O agente motorista apercebendo-se da reacção da senhora, ameaça-a com ordem de prisão por obstrução da prestação de serviço por parte da autoridade no local.
Um homem de meia idade com olheiras profundas grita insanemente. O homem está morto, não vêem que está roxo, o homem morreu.
Alguém liberta a camisa do homem e prepara-se para fazer as manobras básicas de suporte básico de vida.
Um dos agentes diz para o outro ir à mala da viatura buscar o desfibrilhador. Dá 3 passos de corrida e estanca o passo. "Não temos, estava avariado."
Aquele homem de joelhos a fazer as manobras, grita que está morto, está morto. Alguém diz tente, tente, e os bombeiros que não aparecem quando são precisos.
Não há reacção.
Aglomerado de gente entremeia com carros que pretendem seguir marcha.
O agente motorista leva de parte o interveniente do acidente que também se tinha sentido mal.
Ouvem-se cada vez mais estridentes sonoros avisos da chegada da ambulância.
A mulher que estava em contacto com o INEM continua a dizer que vai fazer queixa dos polícias que isto não são maneiras de tratar as pessoas. Não somos cães e nem os cães são enxutados assim.
Chega a ambulância perto do local e a fila de carros que dificilmente conseguem contornar o espectáculo criado pelas duas viaturas, fica meio parada na repetição das sirenes.
Está ali. Já chegaram. O homem está morto.
O outro homem acerca-se do carro. O polícia diz-lhe para lhe apresentar os documentos e não sair de dentro da viatura. Mantenha-se aí.
Era o que faltava eu não estou preso.
Perante a reacção, o polícia dá ordem para não entrar no carro e acompanhá-lo à viatura policial.
Num arremesso de vida, ele entreabre a porta direita e saca do porta luvas um pequeno revólver. Grita "se não foi a guerra que me levou não vão ser vocês" e tanto aponta a arma na direcção das pessoas como do polícia e da testa dele.
A equipa do INEM neste entretanto já descarregou duas vezes a máquina a ver se o ressuscita. Prepara-se para a terceira e última. Nada. O homem está morto. Roxo e com marcas de sangue no asfalto.
"Está morto" diz o médico para o polícia que mantém a arma levantada em paralelo com o braço esquerdo também em riste e ao alto. "Largue a arma, largue a arma homem, não faça nenhuma asneira, não lhe basta o que aconteceu."
"Ele é o culpado" e mantém a boca do revólver no lado direito da testa.
Outro acidente. Um condutor que se assusta ao ver as armas. O do polícia ao alto e a do outro homem. Bateu de lado num carro que vinha de frente a tentar contornar.
Ouve-se barulho no rádio do carro da polícia.
"Quieto"
Um estalo expressivo. Uma cara inexpressiva. Um corpo caído no chão. É o segundo. O homem suicidou-se.
O polícia corre para ele. O outro no rádio do carro pede reforços. Um morto e um suicida.
Estupefacção.
O motorista da ambulância do INEM vai a caminho de ir buscar um lençol. Entra pelas portas abertas por onde sairia a maca se já fossem em marcha de urgência para o hospital que fica a 48 quilómetros de distância.
No momento em que coloca um pé fora, retorna para dentro. São dois os lençóis agora os necessários.
Entrega um deles ao polícia e pergunta se podem tapar o que morreu no chão.
Um aceno de cabeça.
Mais sirenes. Agora uma mota com uma lâmpada rotativa atrás.
É graduado. Os dois polícias já de si não equiparados na mesma patente fazem continência à chegada deste agente.
Conferenciam.
Não os 3. O de menor patente remete-se a suster a presença dos populares para não se aproximarem dos corpos e não contaminarem o local de provas a recolher.
Da conferência resulta uma comunicação para a central e uma participação para a polícia criminal. Há arma de fogo, eles têm que ser chamados. O médico legista. O homem que autoriza a remoção dos corpos da via pública.
O trânsito começa a fluir com a anormalidade possível dentro das circunstâncias.
Chega uma equipa de televisão.
Ouve-se "já cá faltavam estes, umas víboras, cheirou-lhes a sangue". Câmara apontada aos corpos e à disformidade com que os corpos caíram e assim restam.
O médico requere autorização superior para abandonar o local. O seu superior fala pelo telemóvel com o recém chegado graduado.
Um cumprimento de cortesia e ouvem-se fechar as portas da ambulância. Menos um entrave para o trânsito. Assim fica uma esquina mais liberta.
Uma senhora de idade passa de carro e olha fixamente para os corpos. Baixa os olhos e faz o sinal inexpressivo da cruz. Quando levanta os olhos travou bruscamente. Dois rapazes iam ali mesmo ficando debaixo do carro. "abre os olhos sua..." Ai meu Deus, pensou ela.
O agente graduado, já se monta na sua mota de serviço. Deixou indicação. Quando os da perícia chegarem digam-me de imediato. O médico legista está fora da cidade. Saiu para um acidente ferroviário. Um atropelado pelo comboio rápido.
Não. Não se sabe quando é que o senhor Doutor chegará aí.
Começou a pingar quando o graduado saiu com a mota. Claro. Um graduado não anda à chuva de mota. Há que garantir a sua segurança.
Alguém que se prepara para abandonar o seu posto de mirone diz "este país é uma merda, agora ficam aí esses pobres coitados à chuva".
À chuva estou eu, eles estão mortos. Os mortos não apanham chuva. Pensou isto o agente de menor patente. Ainda na semana passada esteve em greve, por melhores salários e melhores condições de trabalho. Nem um impermeável dão aos homens.
Chove copiosamente.
O rasto de sangue do primeiro morto já se misturou com os óleos e sujidade da estrada.
Triste cenário.
Os carros passam, abrem as janelas à passagem do local para que os ocupantes possam dar aquela mirada sinistra. Uns poucos munidos de chapéu de chuva ainda se encontram em redor. Tirando isso só os que do prédio em frente estão à janela.
O que é que há para ver.
Um carro com 3 ocupantes faz sinal de luzes e uma apitadela para os dois polícias no local.
Dois inspectores. O outro coisa qualquer de importante.
A repórter e o seu câmara apontam-se rapidamente para os chegados. São os inspectores. Solicita explica que estes agentes são qualificados para recolherem as provas do crime.
Crime? Qual crime.
Isso é o que se vai apurar, de momento estamos a fazer a perícia regulamentar para estas circunstâncias. Temos a lamentar duas vítimas mortais. Uma ao que tudo indica por força de suicídio e a primeira só a autópsia poderá esclarecer.
Não. Não podemos neste momento sem qualquer tipo de uma investigação apurada e circunstanciada com as provas periciais recolhidas, tirar por agora qualquer resultado definitivo.
Não se sabe a que horas chega o médico legista.
Não pára de chover.
Travagem brusca e carro que se sente derrapar na proximidade deste cenário.
Luzes acesas, limpa pára-brisas ligado. Sai do banco de trás uma mulher aos gritos. Da sua frente um homem novo. Do lado do condutor uma mulher de gabardina preta e de saltos.
Esposa, filho e nora, por esta ordem. Pertencem ao suicida.
Os dois polícias correm para eles. Os dois agentes que recolhem provas períciais são alertados pelo rebuliço.
Comoção extrema. Aquele homem idoso tinha saído do escritório para ir buscar os dois netos que estariam por aquela altura a sair da escola.
Matou-se, como?
O primeiro morto não tem ninguém a caminho.
No carro não se lhe encontra carteira. O telemóvel tem uma dupla verificação de acesso. Sem código não existe a elementar forma de contactar alguém próximo, familiar ou relativo a quem a autoridade possa comunicar a morte.
Mas não tem carteira.
Admiração. Um dos agentes diz que depois da chegada deles ninguém mexeu ou se aproximou de qualquer das viaturas.
Muito bem. Os agentes estão absolvidos de qualquer má prática na prestação de serviço em honra da causa pública, que é para isso que pagamos os nossos impostos.
O agente menos graduado diria que são os impostos que lhe..., que lhe lixam o ordenado.
Mais faltava esta. O carro é alugado. O canhoto, duplicado da requisição do aluguer, está praticamente irreconhecível. Mal passou para a cópia.
Mais um que vai para a gaveta até que alguém se acuse.

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