Uma chave nunca abrirá uma porta que não se deixe abrir.
sexta-feira, 24 de março de 2023
174
Não equacionei a possibilidade de surgirem imponderáveis pelo interior
Só levantei ferro em relação ao exterior
173
"Entardeceu antes de anoitecer"
"Flute de champagne no chão.
Pé alto, assente numa base na qual reflectiam algumas reminiscências da labaredas da lareira ainda acesa.
De dentro do corpo esguio da flute, a vida borbulhava numa cadente explosão de gás que se dissolvia e misturava com a voluptuosidade do generoso champagne francês.
Ao lado da flute de champagne foram deixados o par de sapatos de salto alto, que momentos antes elevavam num sincronismo treinado os passos que agora repousam na suspensão da sua contagem.
O simples toque no sapato do pé direito, o fez tombar e adornar deitado no chão. Militantemente sempre juntos e inseparáveis, quais irmãos gémeos, perfaziam um ângulo seguro de noventa graus.
Numa posição de pouco discernimento luminoso, seriam um único e inseparável da sua sombra projectada, em vez do conjunto completo.
Crepita madeira ardendo, pequenos estalidos semelhantes a minúsculas bombas faiscantes que se libertam da lareira e são aprisionadas à protecção frontal.
Levantada, deu-lhe vida remexendo com a tenaz, revolvidos alguns pedaços de madeira ainda por serem sacrificados naquela combustão prazerosa, projectando na sala um animatógrafo de sombras vivas.
Um parco fio de gás subia à tona acompanhado pelas gotículas geladas da parede exterior da flute que ainda tinham força para escorrer e sossegar no pé da flute.
Bebe-me,
Tem-me enquanto estou gelado, pensaria de forma ousada o néctar champanhe que não via hora de submergir naquele corpo.
Bebe-me,
Deixa-me conduzir-te sobrevoando os teus lábios carregados num garrido e carnudo rouge.
Sobreposto ao crepitar da lareira e do inaudível gás explosivo do champanhe, ecoa num volume de ambiente adormecido um som de piano.
Chopin, Sonata Nocturne número 9.
Numa cadência magistral de sons alternados, permite-se enfim fechar os olhos e deixar esmorecer os sentidos.
Baixam as guardas e são desguarnecidas as defesas da fortaleza.
Desconvoca todas as suas protecções que a guardam no mundo dos vivos e das suas relações.
O processo é vagaroso, não concorrente com o tempo dos humanos sob a ditadura da eficácia e das metas impostas.
Ausenta-se no fechar de olhos, planando o saborear da vida.
Se ocorressem ventos, poderia fluir numa asa delta e percorrer a costa oceânica.
Chopin a conduz e sente.
Na altivez do seu vestido que transforma a linha do seu corpo na afirmação da sua cândida superioridade, agora desarmada e descalça dos seus sapatos de salto que vigiam o seu saborear do tempo, pode sim, descer agora a fragilidade do ser.
Ser,
Ousar ser.
Ouve-se Chopin.
Enleva a alma.
A lareira ganha vida na urgência que arde no fim dos seus últimos fragmentos de lenha.
Restarão cinzas ainda salivantes.
Os lábios colaram-se.
A mão descerra a tensão e caída na proximidade da flute, já não a procura.
O corpo pousa enfim desarmado, aconchegado na poltrona, tantas vezes exausta e cúmplice de momentos de sonhos ousados numa perversão de prazeres em corpos que se misturam.
Chopin está agora terminando a sua Sonata Nocturne número 9 e o corpo está desarmado.
Entardece.
Entardeceu antes de anoitecer.
E sente.
Não são os sentidos desarmados que sentem,
Não é o consciente agora desligado de todos alarmes.
A sua condição subconsciente que assume liderança sobre a carne e o corpo, sobre a razão e a autoridade da sua confiança.
A lareira apagou-se na combustão da restante força que a alimentava.
A flute de champagne ganhou temperatura.
A sombra de um sapato sobre o outro que adornou deitado, já não se permite perceber na sua existência material.
O corpo anoiteceu enlevado na sua dormência e rendido se entrega.
Agora à volta da poltrona circulam os sonhos, os desejos e as vontades nascidas do pecado inconsciente.
Dona e segura da sua condição de névoa, permite-se entre portas mergulhar no ondular da ousadia.
Neste sono profundo, o som da música terminada e que ecoava na sala, acompanha o inconsciente e continua a tocar a Nocturne de Chopin, som que permite sentir as mãos que se aproximam do desejo.
Pede o desejo que se aproximem e toquem o corpo.
Pede o corpo que sinta.
A consciência foi aprisionada e colocada amordaçada.
Não a acordes agora.
Deixa que plane abaixo da consciência dos sentidos.
Murmura.
A mão que tinha descaído da poltrona e procurado a flute de champagne, deu sinal de estremecimento pelo esgar dos dedos.
Algo se está a passar.
Chopin que não tocava em som ambiente, também já não acompanha o entardecer desse início de noite.
Acordada, saboreando a paz, olha para a flute de champagne que perdeu a força e desconcertada, levanta o sapato de salto alto caído e coloca o par ao lado da poltrona.
Pensa, sempre bom regressar do paraíso dos desejos ao mundo real das vontades.
Sente-se quente. Não seria da lareira apagada bem do champagne bebido.
Ruborizou."
Dagoberto de Andrade
171
Cacilhas, daqui foi Cacilhas
Morou uma vida inteira, décadas de aproximação a uma existência mais que sofrida, depois da família ter trocado a fome e o sol escaldante das searas mouras do Alentejo, pela carestia das terras inóspitas da margem sul, paredes meias com a metrópole, capital do império.
Aquela casa que outrora, um terceiro andar com vista para o lodo nauseabundo que uma fábrica de reparações navais, ali depositava sem objecções contrárias das autoridades, volve todas as décadas num envelhecimento profundo, aceitando a degradação com que fora construída embebida por materiais de terceira escolha.
Hoje, aquela velha casa é uma história. Retrato de um lugar ribeirinho que foi absorvido pela luz do rio e do sol, esse que se mantém, já não assassino qual fornalha de calor, passou a zona de luxo.
As fábricas alimentadas pelo rio, seja da pesca mais que artesanal, ou das que tratavam de repor os barcos ao rio, essas transformaram-se no decorrer dos anos. De onde ali estavam, passaram o tempo da vida de trabalho braçal, o tempo da máquina, o tempo da degradação do fecho das fábricas, - diz que mais vale mandar fazer nas Espanhas aqui ao lado -, foi necessário esperar que as terras limítrofes se engalanassem de gentes ávidas de sol e mar, se bem que aqui é rio, e fizessem força suficiente para que esses locais já não lhes bastassem e agora, daqui deste terceiro andar, estranhasse aquelas máquinas que por ali andam a rasgar primeiro o rio e depois as margens.
Foram décadas e décadas disto assim. Aquele barraco onde o Zé Manso tinha a sua fabriqueta é agora uma casa de comer, onde só os estrangeiros podem pagar tanto dinheiro como a água do rio que ali lhe lambe as janelas no caminho até aos mares banhados pelas praias da moda. Coitado do Zé Manso, não foi a tempo de ver isto como mudou.
Daquela casa que outrora, um terceiro andar com vista para o lodo nauseabundo, vê dali a capital parecida com uma boca de dentes agora restaurados e de um branco artificial que pretende mentir a idade, vai contando os últimos caixões que a compasso esvaziam os velhos moradores deste mundo. Este local era em tempos, pela pobreza de negócios uma ilha de poucos, um mundo inteiro de onde esses locais olhavam Lisboa. Este mundo, tanto deles, dos seus pais e filhos que agora resistem à inevitabilidade da morte, vão desocupando as janelas.
Caliças moídas que se desfazem para cima dos novos toldos das casas da moda, janelas de armações de madeira que perderam o gesso gretado com que a vidraria ainda se ia segurando. A dona Geninha se foi coitada, nem a santa casa a quis receber, vinham aí umas moças de vez em quando, era a última do prédio, agora só lhe resta a loja... Coitada, não teve sorte nenhuma, lamentava sempre que a janela dela dava para umas traseiras dos prédios e podia nunca ver o rio se à rua não saísse. Como é possível que um prédio esquinado pelo remate de uma rua torcida, fosse o único que não recebesse a luz prateada e reflectida pela água. Quando o senhor da dona Geninha foi para o lar com a doença dos velhos, ela lá ficou metida às suas sortes. Viveu, quem diga que se lhe ia sozinha depressa, mas carnes rijas que nem Deus lhe quer pegar, também pode ser esquecida pela morte.
A rua principal guardava os afluentes, as travessas e os becos, da rua que desce ao rio, era caminho para varaneantes. Era rua que só descia. Desciam os carros, agora cada vez mais, desciam as pessoas e seus convivas, vinham também as dos prédios circundantes, raramente se via alguém a subir a rua. Parece incrível que nestas décadas passadas, agora devem ter descoberto alguma fonte da juventude. Até a igreja que mal tinha uso de precisão, mal padre assentava vocação, rapidamente se mudava para outros lugares.
Sempre foi um altar pobre.
Aqui nesta terra, esquecida à volta das margens dos lodos ali depositados, as gentes não pensavam em riquezas e fortunas. Igrejas em terras de rara abastança, pouco banco de madeira corrida é necessário.
Naquele terceiro andar, virado para o rio, acabou de morrer o último dos que trouxeram aquela terra desde os tempos do esquecimento até hoje.
Tinha noventa e dois anos. A polícia arrombou a porta porque não havia há algumas semanas sinal do seu Júlio vir à janela. Seu Júlio era daqueles que já não tinha família na terra, porque era natural daquela casa, os filhos, um morreu novo e a outra foi de vez para as Américas. Viveu os últimos tempos com a cabeça atinada. A velhice não lhe pegou pela cabeça mas pelos ossos. Quando deixou de conseguir descer as escadas de madeira, ainda foi a tempo de pedir a um moço de uma loja, daquelas do estrangeiro ainda mais miserável que aquela terra, para que lhe fosse levando a casa algumas coisas de comer.
Seu Júlio, só depois de velho, da sua janela viu a terra que era o mundo inteiro ganhar vida e beleza. Raisparta os estrangeiros, vêm para aqui que nem formigas. As últimas duas décadas foram de desassossego constante. O barulho das obras, obras na rua, obras das lojas, restaurantes, salões de beleza, mercearias daqueles miseráveis da terra do moço que leva o saco ao seu Júlio, mais obras nos apartamentos.
Vão-se os velhos, mudam o miolo das casas. Uma chinfrineira cosmopolita, parecem formigas e abelhas atrás do açúcar.
Isto hoje em dia, da janela da sala do seu Júlio, é um outro mundo.
Tinha noventa e dois anos e seu Júlio foi levado para a morgue do hospital. Devem ter feito a autópsia.
Morreu de causa natural. O tanas, pensou o seu Júlio. O moço contou a alguém, alguém arranjou maneira de prender a porta pelo lado de fora, maneira que seu Júlio não teve força para a empurrar ou puxar. Da janela, as madeiras inchadas à muito que o perro se tornou fechado. Seu Júlio que pouca gente sabe, não morreu naturalmente. Morreu aprisionado na sua casa.
Era o último ocupante do seu prédio. Passados uns dias de ser enterrado a cargo do Estado, porque não foi reclamado, apareceu colocada nos tapumes que envolviam a serventia de acesso à porta da entrada, uma placa da autorização de construção emitida pela câmara municipal.
Seu Júlio deve lá ter pensado, cabrões ainda não aqueci depois de morto e já estão a tratar da vidinha.
Aquele prédio centenário deu lugar a um empreendimento de luxo. Inacessível à bolsa dos velhos dos tempos das águas lodosas, chegam agora de todo o lado para usufruir da qualidade de vida de uma zona da cidade que até aparece nas revistas internacionais. Aquele lugar promete. Não sei se promete o paraíso da luz eterna, ou a vista dos montes de Gólgota.
Uma coisa é certa. Seu Júlio, mesmo assim enterrado, lá vai dizendo, filhas das mães, nunca fui ao estrangeiro, mas foi necessário eu morrer para virem estrangeiros com o seu parlapier apoquentar a minha janela.
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"Segue, seguindo aquele caminho
Traçado, subido e transpirado
Desce a vala de donde as chuvas correm em carreiro
Lá em baixo, ao fundo onde tudo desaparece atrás da correria dos homens,
Existem mulheres mães e mulheres avós já viúvas que aguardam estes que aqui regressam
Mesmo que mortos estropiados, mas que regressem"
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Aguardo a minha morte com a serenidade de quem se deita e mergulha os seus sonhos dentro de pesadelos,
Na antecâmara daquela morada última, são as insónias que me mantêm moribundo.
Uma amálgama de destroços,
Cada um carrega a sua guerra e as suas derrotas...
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"Vou-me embora com estes homens que também se vão. Mal os conheço, mas sei porque é que eles estão comigo.
Está na hora de partir.
Os motores estão mais que prontos.
O destino é a carnificina mais que certa. Vamos fazer figura de utopia da resistência. Ali estaremos a ouvir o zumbido da morte e o ribombar estridente da terraplanagem de uma história. Depois será a paz. Se me encontrares morto, que seja por terem-me entregue a ti os meus restos sobrantes e que as tuas mãos me recebam. Afortunado serei se não ficar na decomposição que alimenta os cães e as terras do campo de batalha.
Agora vou.
Não deixes cair nenhuma lágrima. Cada uma que cair será a pior das bombas que me poderão atingir. Quero ver esses olhos mentirosos de felicidade, de esperança e de amor. Mente-me por uma última vez.
Os tanques de guerra já deitam fumo e os camiões repletos de homens amontoados para serem descarregados na fornalha acenderam as luzes de nevoeiro.
Sim levo tudo, não me esqueci de nada. Também levo um cantil de água mais que suja mas sempre servirá para limpar a cara no momento imediatamente antes de ser abatido ou desmembrado por uma filha da puta de uma bomba cientificamente preparada para não falhar-me como alvo.
Dá-me por favor o teu lenço sujo. Quero levar alguma coisa física que seja tua para compensar a imagem que guardo do teu sorriso e que pelo caminho a possa perder...
Sim, eu sei que prometi que te defendia, não deixei de ser uma mentira, mas se não for morrer para longe também não poderei ficar contigo. Teria de morrer aqui.
Guarda por favor a fotografia que me deste, serias a minha santa padroeira do caminho das lamas e da poeira que teima não descer à terra. Quando for abatido por uma bala que perfurará a porcaria deste capacete de brincar à guerra dos homens maus, não quero que me vasculhem os bolsos e encontrem a representação da beleza e da minha felicidade. Não lhes quero dar esse gozo pérfido.
Bem está na hora de ir, até já e nunca mais nos voltaremos a ver. Tem cuidado contigo, toma conta da nossa casa que daqui a pouco tempo será dizimada. Pelo menos vê se a porta fica bem fechada antes do sótão do último andar cair no chão com tudo o que o segurava. Sim, também cairá aquele último andar onde não raras vezes vimos o pôr do sol e que sempre dizias, pronto apagou-se.
Gritou.
Eles estão a mais ou menos a 250 metros de nós. Escondido debaixo do camião, tinha na mão esquerda esta carta amarrotada, suja e lida pela última vez. No momento da despedida, na semana passada ou há menos dias porque o tempo se confunde e impede de ser contado, não teve coragem de entregar um papel de despedida escrito na pressa de um bico de lápis mal aparado.
Guardou a carta, a fotografia e o lenço. O lenço fez de torniquete na zona da rótula estilhaçada. Amparava as dores a cada vez que mexia ou tentava segurar-se.
Explodiram o camião e as outras tralhas com tudo o que mal mexia.
Muitos deles, eram cinco já não mexiam e não sentiram o calor da deflagração, outros dois dois mal tempo tiveram para sentir mas viraram a cara.
Está na hora de partir..."
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"Um dia estava sozinho como sempre estou, do outro lado e à frente do espelho estava o meu único amigo. Discutimos e dissemos coisas desagradáveis, muito agressivas. Foi um terrível ajuste de contas.
No fim virei costas e apaguei a luz.
Passados uns dias senti o amargo do arrependimento. Voltei ao lugar onde está o espelho. Acendi a luz e esperei. Do outro lado não estava ninguém. O meu reflexo não estava arrependido."
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"Ao derredor do espaço confluiam sons de mar revolto, de chuva tocada a pontaria fácil e a vento capaz de descosturar a bainha de uma saia de moça mais afoita.
Ali o barulho manifestava-se por camadas. Alternadas e suavizadas a espaços, o batuque do enrolar das ondas que se findavam à beira-mar, tinha momentos que parecia subirem a falésia e serem entornados aqui no alto. O vento, esse, não sei se impulsionava as ondas, ou se eram estas que o traziam a ponto de entortar o canavial que arrimava-se contra a terra batida.
A bátega de água que caia, parecia entornada pelos deuses dos céus, furibundos por certo com algum desacerto das coisas miudinhas e mundanidades dos homens.
Esses sons tinham que ser escutados por camadas. O som da chuva tocada a vento que empurra a maré cheia ao ponto alto e seco da terra.
Encoberto da chuva pelas três árvores, o som da chuva foi passando ao respingar das gotas de água que a folhagem resistente desta invernia foi deixando cair. Já não chove, pinga agora, restos que não aproveita ao arvoredo já de si ensopado.
Saído da guarda e chegando à clareira, o vento já não traz som de chuva. Agora é só vento que fere os olhos e faz lacrimejar. Não é caso de choro das amarguras sentidas. É vento de enconsta. Enrolado pela onda, surfando a crista de espuma e vai ele por aqui acima até perder pé de terra da encosta. Ah sacana, aí vais tu, agora sem protecção de terra, vais ser vento junto a outros perdidos que como tu rapidamente chegarão a outros destinos.
Sobra o barulho do mar.
A que é que parece este som. Com o quê é que este murmurar se parece.
Quando Poseidon açambarcou todas as ondas solitárias e as juntou em molhos de sete, lançando-as contra terra, disse-lhes que fossem temerárias e assustadoras. Não temessem os homens nem as suas investidas para as suster. Com isso façam barulho, sigam e sejam mar revolto.
Agora estas ondas pausaram. Pausaram também o clamor bravio do som da sua chegada.
Devem estar ali ao longe, da vista e da costa, a agruparem para nova investida.
Aguardo momentos.
Aproximo-me da comeeira, limite alto da falésia.
Não faz vento, não faz chuva, não faz água revolta e agora em mar chão.
O som é feito por camadas.
Fecho os olhos e agora sim, escuto.
Oiço um passarinhar junto das árvores.
Oiço passos e voz. Anda, anda, aqui, deixa isso
O som é feito de camadas.
O som dos pardais foi com o vento.
Com o fim da chuva veio o homem e o cão.
O som é feito de camadas que se sobrepõem-se, e eu não consigo falar nem me ouvir...
quinta-feira, 23 de março de 2023
165
Daqui se observa a próxima cumeeira, o vento rasante despenteia os afoitos curiosos que teimam fugir da solidão ouvindo cada uma das camadas em que o som se divide.
A passarada de passagem aqui não poisa bico, pouco sustento deve aproveitar. Seja da pouca fome, se bem que pardal não se faz nunca rogado, ou do ventar que faz, não se vê tocar pata e bico com asa pequena.
Se bem que imagino, escapando as últimas chuvas, estes caminhos devem ser férteis em formiga de asa... Esse belo repasto. A ver se o pardal da zona aqui passa e venha picar conduto que seja generoso.
164
A visita ao cofre privado de um banco
Abertura do cofre que guardava a cópia da chave mestre e chave indiferente do cliente. Uma que é a cópia da que o responsável pelo cofre privado que contém as gavetas contratadas pelos clientes, a outra que dispõe de um mecanismo secundário de codificação e reune todas as combinações dos 5012 potenciais utilizadores
162
(...) "Deus despediu-se do seu trabalho.
Sem aviso prévio, tirou o fardamento da empresa que o tinha contratado, e deixou ficar as vestes brancas em cima do cadeirão de onde supervisionava os movimentos dos frequentadores do Condomínio Céu & Paraíso Resort.
Fartou-se.
Não suportava mais o serviço nem as desconsiderações constantes com que era tratado.
Sentado no seu cadeirão, supondo-se detentor de um poder de supervisão inquestionável, era omnipresente, omnipotente e omnisciente. Estava em todo o lado, a toda a hora e sabia de tudo o que se passava naquele luxuoso edifício de 48 pisos.
Era a Deus que as empresas de serviços pediam informações sobre os condóminos, era a ele que o carteiro todos os dias despejava as dezenas de cartas, encomendas e registos, que diligentemente se apressava a colocar nas caixas do correio, ou a informar de algum conteúdo de maior urgência e interesse para o destinatário.
Por diversas vezes, Deus chamava a atenção dos inquilinos mais antigos, que os tempos recentes traziam consigo uma certa falta de tranquilidade e urbanidade. A indignação era resultado do desleixo e da indiferença. Fossem doutores e engenheiros de licenciatura recente mas de trato pouco familiar, fosse das suas esposas com doutas poses de sobranceria que raiavam a falta de amabilidade, sem referir os magotes de moços e moças que circulam numa obscena gritaria e de linguagem imprópria ao gabarito que o 666 da Avenida Principal, tinha granjeado pelas décadas de existência.
Assim foi.
Aborreceram Deus.
Deus olhava para aqueles dias e no que se tinham tornado, com a agrura de quem não se identificava com o desprezo das pessoas que se manifestava na subalternidade e desprezo pela sua função de zelador do espaço e dos haveres.
Deus demitiu-se.
A Comissão de Gestão e Acompanhamento do Condomínio 666, reuniu-se de urgência. Nas primeiras palavras do seu presidente, o Senhor Moisés, disse: "Deus desapaceu, perdemos Deus, quem está a altura de substituir Deus!??"
161
A história de uma mulher que traída pelo marido opressor, se vinga na colecção de amantes, homens também traidores, onde deixa plantadas provas que os incriminam juntos das suas esposas. As que não descobrem, ela os denuncia...
160
Com que sabedoria enches os sapatos usados para caminhar na construção da vida,
De que cor são as linhas com que escreves os traços dos caminhos que percorres,
Afinal de contas, que matemáticas usas para executar a filosofia das tuas perguntas...
159 Elefantes
. Já imaginaste o mundo sem Elefantes?
. Deve ser uma enorme tristeza, disse.
. Uma tristeza? Porquê?
. Gosto tanto de ver os Elefantes no computador, diz que são enormes e parecem ser meigos.
. Mas já estiveste alguma vez ao pé de um Elefante?
. Como assim ao pé? Eu nunca vi um Elefante, nem sabia que era possível isso.
. Posso concluir que o teu mundo não tem Elefantes...
. É uma enorme tristeza agora que penso nisso.
. Ao menos sabes para que servem os Elefantes?
. Não. Talvez para fazerem coisas que os Elefantes habitualmente fazem nos sítios onde vivem...
. Brilhante resposta. Fazem coisas que habitualmente fazem. Nada disso. Os Elefantes existem em todo o lado. À tua volta existem milhares e milhares de Elefantes. Tu é que andas distraído...
. (resmungando) Impossível. Isso não existe...
. Os Elefantes são a presença metafórica do ser humano. O desajustado e desajeitado do ser humano representado por um Elefante colocado dentro de uma loja de candeeiros e que mal se mexe, começa a partir tudo a cada vez que abana os quadris traseiros, ou a tromba, ou as orelhas...
. Ahh ainda um dia destes vi um senhor bater noutro senhor e este entornou o café que estava a beber. Bem, que grande Elefante que estava lá no café.
. E agora já imaginaste o mundo sem Elefantes?
. O mundo seria tão bonito...
158
Pegou no estetoscópio pousado em cima da secretária, ladeando o maquineta da década de oitenta de medir a pressão arterial, e pediu mandando, como quem tem a perícia da autoridade e da sabedoria, desfraldar a roupa.
Afaste-se.
Avancei uns centímetros até à borda da cadeira, aliviando a posição entre as costas da cadeira e as minhas costas.
Cale-se agora.
Já estava calado.
Mais, mais...
Mais, mais o quê, poderia ter pensado naquele momento. Será que a doutora acha que é possível induzir uma ordem através do silêncio.
Inspire. Expire. Fundo. Mais, mais.
Agora sim.
Tinha as olivas auriculares nos ouvidos e com a mão direita, afixava a campânula do diafragma como quem ia marcando uma cruz do jogo do galo nas minhas costas nuas.
Tinha febre e não era pouca, sentia-me a ferver. Pela doença e pela ansiedade.
Mais, isso, e salteava da omoplata esquerda centro baixo. Daí, mais acima, lado direito, inspire.
Perturbado. Senti-me estranhamente perturbado. A mão direita que conduzia a parte da máquina que lhe daria uma imagem sonora do sopro dos meus pulmões, a passo, também lhe sentia, talvez as ponta dos dedos, um pouco mais talvez, seriam os primeiros nós dos dedos da mão direita.
O diafragma da campânula nasceu com o gelado da parte do rebordo metalizado nas minhas costas. Facilmente passou pela receptividade da minha pele ao processo de equivalência da temperatura entre corpo e objecto.
Mas perturbei-me, como se um olhar inquisidor me comprometesse sem que lhe pudesse responder ou disfarçar a minha eventual culpa.
Aqueles dedos que seguravam o equipamento eram frios.
Brutalmente frios.
O contacto funcional entre o exterior de duas pessoas que se tocam, uma que toca e a outra que se dispõe ao contacto, na institucional proximidade que a pele das costas de mim com as impressões digitais da cabeça dos dedos ou dos nós das costas da sua mão, transmitiram-me o sentimento da absurda confusão que recebia pelas minhas condutas sensoriais.
Aquele contacto não foi receptor do quente do meu corpo. Aqueles toques mostraram uma estranha incompatibilidade entre seres humanos vivos.
Deite-se na marquesa.
Levante a camisa.
Levantei-me da cadeira com o pudor de esconder as costas desfraldadas e tentar dar dignidade ao trajecto entre a cadeira e a marquesa revestida com uma gasta e ordinária napa a que se estende um papel de qualidade risível.
Sigo mal amanhado, pior e indecente, pior porque lhes olho de frente sem perscrutar os seus olhos.
Deite-se e puxe a camisa para cima.
Com isso parecia que me equiparava a um pedaço de coisa, a qualidade da carne a que se pergunta ao homem do talho, oh minha senhora, a carne é da melhor qualidade e a este preço nem ganho para o custo.
Sentada na cadeira que vaguei, a doutora com as duas mãos parece que amassa a minha curvilínea barriga. Dá-me um esgar de riso. Apalpa-me.
Perco o riso.
As suas mãos são fibrosas, ásperas e rudes. Continuam frias.
Sinto-lhe a força.
Nem o pão é assim amassado e o conduto do fermento nem abre a sua força.
Não faça força.
Nervoso digo que me faz cócegas.
Não estou a brincar.
Desculpe senhora doutora.
Aquelas mãos estão vazias.
Aquela mulher está vitrificada. Não é receptiva.
Levanta-se da cadeira e manda-me vestir.
Então doutora, pergunto-lhe a custo e sem abrir a voz mais que o murmúrio.
Num bloco de folhas escreve uns rabiscos e coloca uma vinheta com o código de barras. Na secretaria que lhe ponham o resto. Tome isto e peça à funcionária para marcar nova consulta. Não o devo voltar a ver antes do fim do ano, tenho a agenda cheia...
Mas doutora, ainda falta tanto tempo para o fim do ano, e se não melhorar.
Não faço milagres. Agora vá.
Levantei-me, recompus o fraldamento e peguei no casaco.
Estendo a mão para me despedir da doutora, até à próxima senhora doutora, e mantenho a mão esticada.
A custo pousa a caneta e estende a mão. Sem olhar para mim e dizer algo em cortesia de resposta.
Senhora doutora, enquanto lhe sinto a mão fria, senhora doutora, não nos voltaremos a ver.
Interrompe-me com um esgar de riso. Claro que não, pode ir a outro médico, faça como entender.
Não é isso senhora doutora, terei mesmo que consultar, infelizmente, um outro colega seu. A senhora doutora não sabe ainda, mas já lhe senti a morte. A senhora está morta e já não é médica. As pessoas morrem sem títulos. A senhora não tem vida a circular nas mãos. Se calhar mais um pouco e sente-se morrer. Não chame o próximo paciente. Vá para casa morrer. Dificilmente chegará a amanhã.
Que impropério. Que desfaçatez. Ponha-se na rua ou chamo o segurança.
Faça como entender. Repare que rabiscou qualquer coisa nesta folha. Veja. Não está nada escrito.
Os meus sentimentos senhora doutora, lamento a sua própria perda.
157
Se pedes luz terás que aguentar o calor do sol,
Se queres campos irrigados, sofrerás com o alagamento das chuvas,
Se pretendes ventos de feição para soprar velas, sabes que chegam com eles as tempestades,
Se quiseres silêncio, sofres a solidão,
Pedes música, mas arriscas a não gostar do ritmo,
E o tempo,
Esse não tem sobrante.
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