Pegou no estetoscópio pousado em cima da secretária, ladeando o maquineta da década de oitenta de medir a pressão arterial, e pediu mandando, como quem tem a perícia da autoridade e da sabedoria, desfraldar a roupa.
Afaste-se.
Avancei uns centímetros até à borda da cadeira, aliviando a posição entre as costas da cadeira e as minhas costas.
Cale-se agora.
Já estava calado.
Mais, mais...
Mais, mais o quê, poderia ter pensado naquele momento. Será que a doutora acha que é possível induzir uma ordem através do silêncio.
Inspire. Expire. Fundo. Mais, mais.
Agora sim.
Tinha as olivas auriculares nos ouvidos e com a mão direita, afixava a campânula do diafragma como quem ia marcando uma cruz do jogo do galo nas minhas costas nuas.
Tinha febre e não era pouca, sentia-me a ferver. Pela doença e pela ansiedade.
Mais, isso, e salteava da omoplata esquerda centro baixo. Daí, mais acima, lado direito, inspire.
Perturbado. Senti-me estranhamente perturbado. A mão direita que conduzia a parte da máquina que lhe daria uma imagem sonora do sopro dos meus pulmões, a passo, também lhe sentia, talvez as ponta dos dedos, um pouco mais talvez, seriam os primeiros nós dos dedos da mão direita.
O diafragma da campânula nasceu com o gelado da parte do rebordo metalizado nas minhas costas. Facilmente passou pela receptividade da minha pele ao processo de equivalência da temperatura entre corpo e objecto.
Mas perturbei-me, como se um olhar inquisidor me comprometesse sem que lhe pudesse responder ou disfarçar a minha eventual culpa.
Aqueles dedos que seguravam o equipamento eram frios.
Brutalmente frios.
O contacto funcional entre o exterior de duas pessoas que se tocam, uma que toca e a outra que se dispõe ao contacto, na institucional proximidade que a pele das costas de mim com as impressões digitais da cabeça dos dedos ou dos nós das costas da sua mão, transmitiram-me o sentimento da absurda confusão que recebia pelas minhas condutas sensoriais.
Aquele contacto não foi receptor do quente do meu corpo. Aqueles toques mostraram uma estranha incompatibilidade entre seres humanos vivos.
Deite-se na marquesa.
Levante a camisa.
Levantei-me da cadeira com o pudor de esconder as costas desfraldadas e tentar dar dignidade ao trajecto entre a cadeira e a marquesa revestida com uma gasta e ordinária napa a que se estende um papel de qualidade risível.
Sigo mal amanhado, pior e indecente, pior porque lhes olho de frente sem perscrutar os seus olhos.
Deite-se e puxe a camisa para cima.
Com isso parecia que me equiparava a um pedaço de coisa, a qualidade da carne a que se pergunta ao homem do talho, oh minha senhora, a carne é da melhor qualidade e a este preço nem ganho para o custo.
Sentada na cadeira que vaguei, a doutora com as duas mãos parece que amassa a minha curvilínea barriga. Dá-me um esgar de riso. Apalpa-me.
Perco o riso.
As suas mãos são fibrosas, ásperas e rudes. Continuam frias.
Sinto-lhe a força.
Nem o pão é assim amassado e o conduto do fermento nem abre a sua força.
Não faça força.
Nervoso digo que me faz cócegas.
Não estou a brincar.
Desculpe senhora doutora.
Aquelas mãos estão vazias.
Aquela mulher está vitrificada. Não é receptiva.
Levanta-se da cadeira e manda-me vestir.
Então doutora, pergunto-lhe a custo e sem abrir a voz mais que o murmúrio.
Num bloco de folhas escreve uns rabiscos e coloca uma vinheta com o código de barras. Na secretaria que lhe ponham o resto. Tome isto e peça à funcionária para marcar nova consulta. Não o devo voltar a ver antes do fim do ano, tenho a agenda cheia...
Mas doutora, ainda falta tanto tempo para o fim do ano, e se não melhorar.
Não faço milagres. Agora vá.
Levantei-me, recompus o fraldamento e peguei no casaco.
Estendo a mão para me despedir da doutora, até à próxima senhora doutora, e mantenho a mão esticada.
A custo pousa a caneta e estende a mão. Sem olhar para mim e dizer algo em cortesia de resposta.
Senhora doutora, enquanto lhe sinto a mão fria, senhora doutora, não nos voltaremos a ver.
Interrompe-me com um esgar de riso. Claro que não, pode ir a outro médico, faça como entender.
Não é isso senhora doutora, terei mesmo que consultar, infelizmente, um outro colega seu. A senhora doutora não sabe ainda, mas já lhe senti a morte. A senhora está morta e já não é médica. As pessoas morrem sem títulos. A senhora não tem vida a circular nas mãos. Se calhar mais um pouco e sente-se morrer. Não chame o próximo paciente. Vá para casa morrer. Dificilmente chegará a amanhã.
Que impropério. Que desfaçatez. Ponha-se na rua ou chamo o segurança.
Faça como entender. Repare que rabiscou qualquer coisa nesta folha. Veja. Não está nada escrito.
Os meus sentimentos senhora doutora, lamento a sua própria perda.
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