sexta-feira, 24 de março de 2023

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Cacilhas, daqui foi Cacilhas 

Morou uma vida inteira, décadas de aproximação a uma existência mais que sofrida, depois da família ter trocado a fome e o sol escaldante das searas mouras do Alentejo, pela carestia das terras inóspitas da margem sul, paredes meias com a metrópole, capital do império.
Aquela casa que outrora, um terceiro andar com vista para o lodo nauseabundo que uma fábrica de reparações navais, ali depositava sem objecções contrárias das autoridades, volve todas as décadas num envelhecimento profundo, aceitando a degradação com que fora construída embebida por materiais de terceira escolha.
Hoje, aquela velha casa é uma história. Retrato de um lugar ribeirinho que foi absorvido pela luz do rio e do sol, esse que se mantém, já não assassino qual fornalha de calor, passou a zona de luxo.
As fábricas alimentadas pelo rio, seja da pesca mais que artesanal, ou das que tratavam de repor os barcos ao rio, essas transformaram-se no decorrer dos anos. De onde ali estavam, passaram o tempo da vida de trabalho braçal, o tempo da máquina, o tempo da degradação do fecho das fábricas, - diz que mais vale mandar fazer nas Espanhas aqui ao lado -, foi necessário esperar que as terras limítrofes se engalanassem de gentes ávidas de sol e mar, se bem que aqui é rio, e fizessem força suficiente para que esses locais já não lhes bastassem e agora, daqui deste terceiro andar, estranhasse aquelas máquinas que por ali andam a rasgar primeiro o rio e depois as margens.
Foram décadas e décadas disto assim. Aquele barraco onde o Zé Manso tinha a sua fabriqueta é agora uma casa de comer, onde só os estrangeiros podem pagar tanto dinheiro como a água do rio que ali lhe lambe as janelas no caminho até aos mares banhados pelas praias da moda. Coitado do Zé Manso, não foi a tempo de ver isto como mudou.
Daquela casa que outrora, um terceiro andar com vista para o lodo nauseabundo, vê dali a capital parecida com uma boca de dentes agora restaurados e de um branco artificial que pretende mentir a idade, vai contando os últimos caixões que a compasso esvaziam os velhos moradores deste mundo. Este local era em tempos, pela pobreza de negócios uma ilha de poucos, um mundo inteiro de onde esses locais olhavam Lisboa. Este mundo, tanto deles, dos seus pais e filhos que agora resistem à inevitabilidade da morte, vão desocupando as janelas.
Caliças moídas que se desfazem para cima dos novos toldos das casas da moda, janelas de armações de madeira que perderam o gesso gretado com que a vidraria ainda se ia segurando. A dona Geninha se foi coitada, nem a santa casa a quis receber, vinham aí umas moças de vez em quando, era a última do prédio, agora só lhe resta a loja... Coitada, não teve sorte nenhuma, lamentava sempre que a janela dela dava para umas traseiras dos prédios e podia nunca ver o rio se à rua não saísse. Como é possível que um prédio esquinado pelo remate de uma rua torcida, fosse o único que não recebesse a luz prateada e reflectida pela água. Quando o senhor da dona Geninha foi para o lar com a doença dos velhos, ela lá ficou metida às suas sortes. Viveu, quem diga que se lhe ia sozinha depressa, mas carnes rijas que nem Deus lhe quer pegar, também pode ser esquecida pela morte.
A rua principal guardava os afluentes, as travessas e os becos, da rua que desce ao rio, era caminho para varaneantes. Era rua que só descia. Desciam os carros, agora cada vez mais, desciam as pessoas e seus convivas, vinham também as dos prédios circundantes, raramente se via alguém a subir a rua. Parece incrível que nestas décadas passadas, agora devem ter descoberto alguma fonte da juventude. Até a igreja que mal tinha uso de precisão, mal padre assentava vocação, rapidamente se mudava para outros lugares. 
Sempre foi um altar pobre.
Aqui nesta terra, esquecida à volta das margens dos lodos ali depositados, as gentes não pensavam em riquezas e fortunas. Igrejas em terras de rara abastança, pouco banco de madeira corrida é necessário.
Naquele terceiro andar, virado para o rio, acabou de morrer o último dos que trouxeram aquela terra desde os tempos do esquecimento até hoje.
Tinha noventa e dois anos. A polícia arrombou a porta porque não havia há algumas semanas sinal do seu Júlio vir à janela. Seu Júlio era daqueles que já não tinha família na terra, porque era natural daquela casa, os filhos, um morreu novo e a outra foi de vez para as Américas. Viveu os últimos tempos com a cabeça atinada. A velhice não lhe pegou pela cabeça mas pelos ossos. Quando deixou de conseguir descer as escadas de madeira, ainda foi a tempo de pedir a um moço de uma loja, daquelas do estrangeiro ainda mais miserável que aquela terra, para que lhe fosse levando a casa algumas coisas de comer.
Seu Júlio, só depois de velho, da sua janela viu a terra que era o mundo inteiro ganhar vida e beleza. Raisparta os estrangeiros, vêm para aqui que nem formigas. As últimas duas décadas foram de desassossego constante. O barulho das obras, obras na rua, obras das lojas, restaurantes, salões de beleza, mercearias daqueles miseráveis da terra do moço que leva o saco ao seu Júlio, mais obras nos apartamentos.
Vão-se os velhos, mudam o miolo das casas. Uma chinfrineira cosmopolita, parecem formigas e abelhas atrás do açúcar.
Isto hoje em dia, da janela da sala do seu Júlio, é um outro mundo.
Tinha noventa e dois anos e seu Júlio foi levado para a morgue do hospital. Devem ter feito a autópsia.
Morreu de causa natural. O tanas, pensou o seu Júlio. O moço contou a alguém, alguém arranjou maneira de prender a porta pelo lado de fora, maneira que seu Júlio não teve força para a empurrar ou puxar. Da janela, as madeiras inchadas à muito que o perro se tornou fechado. Seu Júlio que pouca gente sabe, não morreu naturalmente. Morreu aprisionado na sua casa.
Era o último ocupante do seu prédio. Passados uns dias de ser enterrado a cargo do Estado, porque não foi reclamado, apareceu colocada nos tapumes que envolviam a serventia de acesso à porta da entrada, uma placa da autorização de construção emitida pela câmara municipal.
Seu Júlio deve lá ter pensado, cabrões ainda não aqueci depois de morto e já estão a tratar da vidinha.
Aquele prédio centenário deu lugar a um empreendimento de luxo. Inacessível à bolsa dos velhos dos tempos das águas lodosas, chegam agora de todo o lado para usufruir da qualidade de vida de uma zona da cidade que até aparece nas revistas internacionais. Aquele lugar promete. Não sei se promete o paraíso da luz eterna, ou a vista dos montes de Gólgota.
Uma coisa é certa. Seu Júlio, mesmo assim enterrado, lá vai dizendo, filhas das mães, nunca fui ao estrangeiro, mas foi necessário eu morrer para virem estrangeiros com o seu parlapier apoquentar a minha janela.

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