sexta-feira, 24 de março de 2023

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"Entardeceu antes de anoitecer" 

"Flute de champagne no chão.
Pé alto, assente numa base na qual reflectiam algumas reminiscências da labaredas da lareira ainda acesa.
De dentro do corpo esguio da flute, a vida borbulhava numa cadente explosão de gás que se dissolvia e misturava com a voluptuosidade do generoso champagne francês.
Ao lado da flute de champagne foram deixados o par de sapatos de salto alto, que momentos antes elevavam num sincronismo treinado os passos que agora repousam na suspensão da sua contagem.
O simples toque no sapato do pé direito, o fez tombar e adornar deitado no chão. Militantemente sempre juntos e inseparáveis, quais irmãos gémeos, perfaziam um ângulo seguro de noventa graus.
Numa posição de pouco discernimento luminoso, seriam um único e inseparável da sua sombra projectada, em vez do conjunto completo.
Crepita madeira ardendo, pequenos estalidos semelhantes a minúsculas bombas faiscantes que se libertam da lareira e são aprisionadas à protecção frontal.
Levantada, deu-lhe vida remexendo com a tenaz, revolvidos alguns pedaços de madeira ainda por serem sacrificados naquela combustão prazerosa, projectando na sala um animatógrafo de sombras vivas.
Um parco fio de gás subia à tona acompanhado pelas gotículas geladas da parede exterior da flute que ainda tinham força para escorrer e sossegar no pé da flute.
Bebe-me, 
Tem-me enquanto estou gelado, pensaria de forma ousada o néctar champanhe que não via hora de submergir naquele corpo.
Bebe-me,
Deixa-me conduzir-te sobrevoando os teus lábios carregados num garrido e carnudo rouge.
Sobreposto ao crepitar da lareira e do inaudível gás explosivo do champanhe, ecoa num volume de ambiente adormecido um som de piano. 
Chopin, Sonata Nocturne número 9. 
Numa cadência magistral de sons alternados, permite-se enfim fechar os olhos e deixar esmorecer os sentidos.
Baixam as guardas e são desguarnecidas as defesas da fortaleza.
Desconvoca todas as suas protecções que a guardam no mundo dos vivos e das suas relações. 
O processo é vagaroso, não concorrente com o tempo dos humanos sob a ditadura da eficácia e das metas impostas.
Ausenta-se no fechar de olhos, planando o saborear da vida. 
Se ocorressem ventos, poderia fluir numa asa delta e percorrer a costa oceânica. 
Chopin a conduz e sente.
Na altivez do seu vestido que transforma a linha do seu corpo na afirmação da sua cândida  superioridade, agora desarmada e descalça dos seus sapatos de salto que vigiam o seu saborear do tempo, pode sim, descer agora a fragilidade do ser. 
Ser, 
Ousar ser.
Ouve-se Chopin.
Enleva a alma.
A lareira ganha vida na urgência que arde no fim dos seus últimos fragmentos de lenha.
Restarão cinzas ainda salivantes.
Os lábios colaram-se.
A mão descerra a tensão e caída na proximidade da flute, já não a procura.
O corpo pousa enfim desarmado, aconchegado na poltrona, tantas vezes exausta e cúmplice de momentos de sonhos ousados numa perversão de prazeres em corpos que se misturam.
Chopin está agora terminando a sua Sonata Nocturne número 9 e o corpo está desarmado.
Entardece.
Entardeceu antes de anoitecer.
E sente.
Não são os sentidos desarmados que sentem, 
Não é o consciente agora desligado de todos alarmes. 
A sua condição subconsciente que assume liderança sobre a carne e o corpo, sobre a razão e a autoridade da sua confiança. 
A lareira apagou-se na combustão da restante força que a alimentava. 
A flute de champagne ganhou temperatura. 
A sombra de um sapato sobre o outro que adornou deitado, já não se permite perceber na sua existência material.
O corpo anoiteceu enlevado na sua dormência e rendido se entrega.
Agora à volta da poltrona circulam os sonhos, os desejos e as vontades nascidas do pecado inconsciente.
Dona e segura da sua condição de névoa, permite-se entre portas mergulhar no ondular da ousadia.
Neste sono profundo, o som da música terminada e que ecoava na sala, acompanha o inconsciente e continua a tocar a Nocturne de Chopin, som que permite sentir as mãos que se aproximam do desejo. 
Pede o desejo que se aproximem e toquem o corpo. 
Pede o corpo que sinta. 
A consciência foi aprisionada e colocada amordaçada. 
Não a acordes agora. 
Deixa que plane abaixo da consciência dos sentidos. 
Murmura. 
A mão que tinha descaído da poltrona e procurado a flute de champagne, deu sinal de estremecimento pelo esgar dos dedos. 
Algo se está a passar. 
Chopin que não tocava em som ambiente, também já não acompanha o entardecer desse início de noite. 
Acordada, saboreando a paz, olha para a flute de champagne que perdeu a força e desconcertada, levanta o sapato de salto alto caído e coloca o par ao lado da poltrona. 
Pensa, sempre bom regressar do paraíso dos desejos ao mundo real das vontades.
Sente-se quente. Não seria da lareira apagada bem do champagne bebido.
Ruborizou."

Dagoberto de Andrade

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