quinta-feira, 23 de novembro de 2023

189

"Eu não lhe consigo provar que deus não existe. A sua não existência ou evidência física e mensurável não me permite ter a veleidade de concluir pela sua inexistência. Assumo a regra matemática da probabilidade da ocorrência de um evento, que pelo facto de ainda não ter ocorrido é justificado pela ideia da sua possibilidade de vir a ocorrer. 
Porém, e com um porém afirmativo, não me conseguirás convencer da existência de deus através da sua mera explicação metafórica da ideia imaginária convencionada pelas obras litúrgicas; e que se seguires pela via da argumentação onde a prova da sua inexistência ou manifestação é em toda a sua extensão um defeito ou incapacidade pessoal de receber essa experiência cognitiva, não estarás mais do que a assumir em oposição ao que te disse, que deus é um assunto irresolúvel; pelo menos até ao dia em que ele se apresente à luz inequívoca do dia. 
Pois meu caro, se ele hipoteticamente se apresentasse de que credibilidade seria credor depois de tanto sangue derramado em seu nome? Com as mãos ensanguentadas e empunhando uma faca? 
Por quem oras preces em louvor da morte eterna, se em vida é o que sabes."

188

(...) "no exacto momento em que o obturador da máquina fotográfica cumpre a sua função, gerou imediatamente uma partícula de passado. Ficou para trás de forma inalcançável e nunca repetível. Mesmo que a distância do momento esteja ali mesmo ao alcance de um braço esticado ou do passo acelerado, aquele frame passou para lá da sua extinção.
Sobra a ilusão de um presente acontecido..." (...)

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

187

"O poeta susteve o passo,
raramente urgência maior o fazia tirar do bolso do casaco aquele pequeno caderno de folhas que mais pareciam ter sido ratadas pelo bicho da traça,
Com a mesma força com que o vapor que se afasta da chaminé à chegada ao destino,
uma locomotiva de inspiração despejava aquela ânsia de não perder palavra.
Encostado,
apoiado na força com que se tombou de contra ao peso inerte da parede, 
despejava uma torrente avassaladora com que aquela ideia se apresentou.
A inspiração da presença de um farol perdido na ponta de um cabo, porção de terra cuja língua ainda guardava essa fortificação, 
susteve os dedos da mão direita que empunhavam a esferográfica,
e agora sim, ali terminava. 
O farol tinha a luz rotativa apagada e o mecanismo solidificado pelo salitre das longas maresias.
Naquele momento principal, o poeta tinha deixado morrer o faroleiro e perdido a contagem das embarcações que circundavam aquela linha de costa. 
Percorria as linhas furiosamente escorridas na claridade da sua ilusão,
e agora, prisioneiro de si,
não se perdoava não ter chegado a tempo.
O faroleiro tinha morrido,
e com ele o poeta criador."

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

186

Um longo Inverno que se foi adensando, por cima de um Outono já de si triste. 
As árvores e suas ramagens foram despidas, sombras de si perdidas na finda jovialidade.
O ciclo dos dias são carregados sob um manto espesso de texturas nublosas e da presença da invernia que de antemão atemoriza o respeito dos humanos.
Os pássaros sobrantes, que ainda neste nascer do dia se fizeram anunciar, debandaram seguramente para latitudes mais amistosas, e lá, talvez, imaginarem-se animais eles também decisores da natureza. 
Os pássaros poderiam ainda pousar sobre os frondosos galhos, as nuvens em vez de largos charcos de chuva prontos a descarregar, poderiam estar límpidas de maus presságios, até aqueles surtos quase psicótipos de rajadas de vento, poderiam ainda assim ser transformados em serenas brisas levemente sopradas.
Tudo poderia. Todos poderiam. Poder. Poder.
A exigência do ser possível como um acto consumado ainda por se transformar.
Qualquer que seja a manifestação meteorológica do tempo, é a condição e a circunstância que define o ser humano. O resto é a paisagem que o compõe.

185

"Na ténue linha de horizonte, onde se confundem a terra lamacenta sofrida da invernia, com o céu que se purifica nos constantes e persistentes acessos de ira e das borrascas que nos transportam para tempos outrora iniciais, desperta assim um certo dealbar ou uma nova fronteira que alarga a separação. 
Temem os homens das terras pedregosas, que essas nesgas de promessa de mudança, raramente se traduzam no despertar da Primavera das luzes e das ideias. 
Que de um Inverno rasgado e não poupado, afinal de contas, mais não seja a antecâmara da antevéspera do final de um inaudito Outono, promessa e preparação de novas tormentas que se adivinham. 
Diz a sabedoria, quanto mais tarda menos nos vemos livre delas, como quem diz, se é para sofrer que venha rápido e depressa acabe, até para que os cães possam enfim começar a lamber as feridas. 
Entretanto, e porque o Inverno dos dias que correm, teima a não nos largar, resta a esperança de poder observar a persistência da evocação da esperança.
Há sempre homem na esperança.
Haverá sempre evocação dos sons dos finados quando a guerra se perde. 
A irrepetibilidade da formação de um floco de neve é a simbologia que se retira dos dias. Nenhum precede outro igual, nem outro se permite repetir.
Neste final do resquício da descoberta entre fronteiras dos dias que se sucedem ou se atropelam, ouve-se o crepitar das pinhas que se abrem no fogo chão, enquanto a cafeteira do café aquece ao lume.
Mesmo que o café seja amargo."
Dagoberto de Andrade, pelos "Invernos destes dias"

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

184

O Ser Humano passou de TER perguntas para FAZER a fazer todas as perguntas.
Depois, assumiu procurar respostas para as perguntas que colocava. Das respostas gerou dúvidas, das dúvidas criou outras perguntas.
De nómada a produtor. De produtor à criação de riqueza para um mínimo deles assentes numa superioridade corporativa.
A tecnologia trouxe novas dimensões e dinâmicas de convivência entre sociedades locais que ultrapassaram as suas fronteiras históricas.
O Ser Humano incorporou o sentido de Humanidade. Alargou horizontes. 
Ir mais longe, mais alto, mais profundo e eficientemente no que apelidou de evolução e conquistas. Conquistas sobre outras comunidades apelidadas de tribais e pouco evoluídas. 
Entretanto, as máquinas e as sucessivas transformações tecnológicas, criaram eficácia e rentabilidade dos processos produtivos. Geramos trabalho para uma mínima redistribuição de ganhos e maximização de fluxos de capitais.
A Humanidade passou a saber onde se encontra o Conhecimento, catalogado e devidamente condicionado na sua demonstração. O Ser Humano sabe onde está a informação em forma de anúncio e rascunho. Deixou de verificar fontes porque não consome dados. São os fluxos de dados que reorientam as pessoas. Para a Humanidade importa saber que determinada situação existe e que está acessível a alguém. Esse alguém que trate de interpretar as variantes das verdades construídas por bases não identificáveis.
A mestria da Ilusão. A preguiça da mordomia com que a chegada da expansão da Inteligência Artificial, vulgarizou o sedentarismo dos bípedes entregues à entrada de uma nova e sofisticada caverna das ideias difusas. Sócrates e Platão tinham razão há mais de dois milénios.
Somos absolutamente o produto de uma coisa híbrida inserida no circuito de um círculo gerador de humanóides, seres de carne ainda sem as protecções exteriores ou interiores de um esqueleto mecânico, mas que já se nos orienta como cobaias de uma outra forma de vida.
Neste entretenimento, um entretanto temporal, o Homem se tornou numa espécie capaz de prever e decidir a sua extinção num processo de destruição dos mecanismos dos equilíbrios do planeta Terra. Somos a espécie invasora e predadora que poderia perfeitamente simular a chegada de seres habitantes de outras paragens estrelares.
A ficção literária e cinematográfica já nos apresentou todos os cenários. Basta que a vida, real e terrena, consiga copiar a ficção.
Vamos morrer todos. Todos. Todos.

183

O Lenhador que tinha a sensibilidade de um... 
... o Apicultor com a destreza de manejador de rebanhos de Abelhas