quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

118 - do que sobra

Subjaz meu corpo perscrutando do que da carne sobra, o espírito que sobrevoa e revive pela efémera ascensão, 
Acontece a paz na separação do sólido imóvel, alimento último do húmus da vaporização do saber e do sensível que agora esfuma ao tocar a copa das árvores.
Resulta impaciente,
O incómodo da contradição, 
O peso das ossadas desprendidas da carne pútrida, é valorizada pela sua existência degradada, no detrimento da imensidão do saber e poder de razão acumulada em vida.
De que vale a complexidade e substância do saber, se este desaproveitado nem às terras lodosas junta fértil que incremente vida renovada à natureza mãe inicial.
No momento em que tombou, sentiu que a massa corpórea que dava razão à sinalização da finitude da vida; seria a consumação do substantivo presente e de ligação pela consciência do derramado sumo fértil, e o saber de uma vida, o adjectivo findo não transmissível.
Até os ignorantes do saber são tão úteis quanto os doutos das referências da humanidade.
Assim o morto pode tombar e sentir-se útil,
Por via das dúvidas, se levante a lápide graciosa, alguém que se lhe lembre de esculpir o adjectivo.
Aqui jaz, fulano de tal, morreu e em vida produziu saber que na hora final não se lhe aproveitou saber guardar numa cápsula do tempo.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

117 - uma mina

Uma mina subterrânea.
Em laboração há quase cinco décadas, depois de resolvido parte de um enigma que se encontrava dissimulado numa pintura do século quinze, e que uma intervenção de restauro com tecnologias mais avançadas e menos intrusivas nas camadas interiores de pintura, conseguiu obter a resolução matemática que a obra transmitia.
Uma mina subterrânea de rocha dura e pouco fragmentária, resistente e ultra resiliente à intervenção da maquinaria dos homens.
Existe a ideia que algures no seu interior, numa localização imprecisa está um diamante raro. Melhor dizendo, uma lenda ancestral refere a clausura infinita e intemporal de uma pedra preciosa, de valor incalculável, para todo o sempre em qualquer ponto do tempo de sobrevida do planeta e dos homens que em momento por definir possa ser calculado.  
Mas, é impenetrável, dela não se retira uma reacção ou caminho seguro de perfuração mecânica.
Tudo se reveste num enorme mistério. 
Se a mina é rica, se está a ser perfurada na localização certa, a que profundidade estará a suposta pedra preciosa. 
Se esta é consentânea com o mito. 
Ao longo dos anos a actividade de perfurar a rocha da mina, foi utilizando sucessivas várias técnicas e formas de conseguir penetrar numa direcção que a evidência demonstrasse a melhor capacidade de atingir o sucesso. As leituras que se retira da rocha são inexpressivas. Parece ser uma zona imune e quase nada responsiva ou reactiva à agressividade das inúmeras intervenções. 
Por diversas vezes quem custeia e suporta a operação decidiu ou ponderou desistir, mas a possibilidade de atingir o sucesso criou maior ilusão que ultrapassou a racionalidade do investimento gerado há várias décadas. O investimento até agora realizado em toda a operação nas suas múltiplas vertentes a ser abandonado é a assumpção da ruína do edifício utópico e filosófico gerado em paralelo com a operação. Custa muito mais continuar que abandonar a operação. Mas abandonar é imediatamente a destruição com repercussões e constrangimentos por equacionar. 
Os operários estão velhos, por substituir, sem forças e doentes. 
Cada vez mais lhes é difícil operar. 
A zona tem sido afectada com desmoronamentos exteriores e fragmentação de rochas e terras sem qualquer tipo de influência no processo de escavação. 
A escavadora principal e a máquina perfuradora à qual têm sido aplicadas brocas de enormes e diferentes materiais compósitos, apresenta enormes perturbações de funcionamento e desgaste, que leva à sua consequente inoperacionalidade. Ao invés, quanto mais tempo a intervenção passa baseada num processo de trabalho constante sem produzir evidência de sucesso, maior avoluma o sentimento mítico da mina não responsiva que protege o valioso diamante ou o que quer que seja que lá no seu coração em profundidade possa guardar. 



A mina, por fim, tem a boca da perfuração localizada na base térrea de uma alta montanha e perfurada no sentido descendente. A montanha que guarda este alegado fenómeno de um diamante de características inolvidáveis, está revestida por uma bela vegetação, desde a base com árvores de pequeno e médio porte até ao cume onde se encontra um manto rasteiro de flores... Há quase duas décadas que o tesouro tem sido procurado e forças desconhecidas guardam-no com um poder que não é humano. Contra forças desiguais, não há formas de se vencer. Talvez a montanha tenha colocado uma localização falsa de um diamante em forma de espectro ainda mais ampliado para que conseguisse enganar a real localização da pedra. Os voluntariosos mineiros, agora exaustos e doentes, passaram a temer forças emanadas pela própria montanha, que não lhe sendo possível perceber contra o quê ou quem têm lutado, sabem que não alcançarão o objectivo de uma boa parte das suas vidas. Estão entregues ao medo, à atracção da descoberta e à cada mais crescente sensação de frustração. Muitos dos que descem pelo poço perfurado, fazem o trajecto em forma de despedida, outros somente levam os olhos fechados e agarram às pegas de segurança que os conduzem numa descida para o inferno. A meio da descida, a gaiola que entrega a remessa dos mineiros às profundezas já escavada, começa a perder a força da luminosidade das lâmpadas cada vez mais espaçadas. Por essa altura, alguns dos mais antigos entoam num lente gemido o trautear das músicas que amparavam os homens que da dureza dos trabalhos, ainda encontravam força para acomodar o medo dos mais novos. Uns, outros, pediam ao Altíssimo, outros às suas mães... mas sempre durava um, adeus meu filho, nas últimas palavras. Chegados ao fim da descida da gaiola, existe ainda um longo caminho a percorrer que embora já estando electrificado, ainda dista alguma distância a vencer. Os mineiros seguem em fila como as formigas o fazem à luz do dia. Os mais antigos são responsáveis pelo encaminhar das suas equipas para cada local das inúmeras ramificações em exploração. Aqui em baixo, o ar quase que se come com a boca aberta. Se pudesse ser representado em desenho de papel, o fim do poço da mina abre em inumaras ramificações de vias trabalhadas desde o início das escavações foi esventrando da base da montanha até insondáveis profundidades. Esse desenho só seria comparável à circulação sanguínea das veias e de uma complexa comunidades construtora de túneis por formigas.

domingo, 1 de janeiro de 2023

116 - dos calendários

A mudança de ano é um evento matemático baseado na renovação da rotina. 
Por sua vez, para que a fórmula mantivesse uma exactidão de estabilidade e simplificação da observação do calendário nos tempos em que a mecânica da datação era totalmente rudimentar, com mínima intervenção de cálculo mecânico, foi mascarada a anulação do excesso e do defeito. A redução do erro foi inventada através da implementação do dia suplementar do ano bissexto.
A superstição necessita de ter por base a existência de uma coincidência mística, e o dia primeiro, se é absolutamente um elemento de continuidade no movimento dos astros, o calendário reveste-o de propósito iniciático. Na cadência daquilo onde o ser humano não tem intervenção, para além da observação; o sol nasce e põe-se, a Lua que compreende uma rotação sobre a Terra, que por sua vez completam em conjunto uma rotação sobre o Sol, esta constante garante da estabilidade da vida, é absolutamente indiferente ao desígnio do falso poder do ser humano. 
Daqui que a componente mística alusiva à festividade da renovação da contagem diarística, retornando a um ponto de  terminus da contagem artificial do calendário e iniciando nova sequência num momento redondo, tal qual a rotação dos planetas sobre o eixo do Sol, que simulasse o circulo da passagem dos dias, semanas e meses, passando pelo mesmo momento de partida mas num anel de contagem superior em espiral, vulgo mudança de ano, necessitaria de um evento visível natural, não desencadeado pelo ser humano, e que justificasse este artifício. 
Se bem explicado, o lançamento de fogos naturais ou festivos no imediato segundo do fecho do círculo, simula o sinal que a humanidade procura e não encontra possibilidade de ocorrer, manifestada pelo e do cosmos. 
Se a natureza cósmica traduz a contagem do tempo na representação humana por uma linha infinita, o ser humano na sua assumpção da interrogação perante o desconhecido e o até então inexplicável à luz da sua capacidade de interpretação dos factos pela limitação de conhecimentos tecnológicos, criou pela consciência, reflexão e arte, a representação do evento. Fosse por gigantescas piras de lume no cimo de montes e montanhas, ou pela explosão e queima de fogos que a mestria da química rudimentar inventou. 
A matemática, expressão científica em conluio com a filosofia, colocou o dia 1 de 365, em substituição daquilo que o cosmos não nos oferece. 
Se não nos emitem do espaço um sinal de alerta para a mudança e interrupção da contagem dos dias e das noites, o ser humano se encarregou de criar o elemento místico, porque ultrapassa o nosso racional e festivo, porque faz alusão ao elemento que não controlamos. 
Em suma, o que a linha do horizonte infinito do tempo é, não mais que um ponto de luz em fuga, o ser humano se encarregou de o parcelar numa contabilidade artificial ao sabor do elemento da metáfora religiosa ou das ideias. A representação da consciência humana através das várias ideologias, colocou o início do seu calendário em pontos distintos do passado, aludindo às diferentes imagens que veneram, sem que consigam alterar o único ponto indivisível da equação. Em qualquer que seja a metáfora ideológica venerada, respeitando e percorendo as 24 diferentes latitudes do fuso horário, o sol nasce e põe-se sempre através do mesmo ponto de observação. 
O que o ser humano não controla por criação, mistifica por alusão.