domingo, 27 de novembro de 2022

Nasceu o sol,
Finalmente o inverno nórdico foi vencido e já passou para lá das costas das montanhas.
O ser que hiberna na cave dessa casa, saberá do efeito que agora se descobre pelo restolhar que os primeiros animais fazem ao circundar as imediações do alpendre.
Inundação de vida.
Para que não seja engolido pelas águas de luz, hoje só destrancará a portinhola do alçapão.
Trac trac, duas voltas... 
Amanhã abre o fecho e levanta para espreitar. 
Se as frinchas que deixaram perpassar o frio medonho do inverno forem suficientemente honestas, serão as mesmas que se apresentam rasgadas pela luz.
É hora de subir.
Devagar, cuidado, não te deixes ser inundado pela força da água da vida, escuta o matracar pelos seus sucessivos pensamentos.
Lá fora estará cego, demorará algum tempo a adaptar-se ao desfazer das trevas...
E agora,
Antes estava fechado na companhia do escuro,
Agora está sozinho na ausência da vida que ainda necessita de força para desfazer a neve caída,
O tempo do inverno dilata,
O tempo passa a ser um movimento unificado em dias escuros e noites de ausência. Sucessivos dias minguados e noites longas, até que o círculo escuro se fecha.
Escurece, anoitece, o tempo dilata.
Envelhecer apenas um dia e uma noite na consciência de que a dimensão está deturpada. Lá fora o tempo corre parado mas o contador segue a cadência das horas e dias ignorados. 
Inundação de vida.
Uma ameaça. 
Aqui o dia findo e a longa noite sobrevivida é equivalente aos meses lá fora passados no adormecimento enterrado na neve caída.
Cautela.
Não te deixes enganar com a inundação da vida, ainda te afogas nesse inconveniente desejo de viver.
Bom dia, bom dia luz, bom dia que aquece.
Quando a neve desfeita der lugar a água cristalina e a água secar e descobrir o musgo nas madeiras do alpendre, virá cá fora dar a saudação ao mundo,
Quando regressar e começar a limpeza da lúgubre sala, sentirá o temor de iniciar novo ciclo de vida.
A inundação da vida será uma enxurrada de sentimentos quando sentir a força para se observar no velho quadrado de espelho que não teve direito a moldura.
Depois de sofrer a inundação da vida, perguntará, se só passou um dia e uma longa noite, porque envelheci estes anos todos cravados na aspereza das mãos e da face.

Sem comentários:

Enviar um comentário