"Comprei poucos sapatos na vida, e dos poucos que tive dei-lhes mais uso, a esses pobres coitados, que alguma vez imaginariam sofrer.
Os pés que carregam o corpo em passos arrastados; as pernas mal articuladas cansadas da vida que calcorrearam todas as pedras da calçada de qualquer rua desta cidade, e esse espírito sofrido mergulhado em constante desassossego e inquietação.
Não esquecerei aquele dia em que tive os meus primeiros sapatos de homem. Agarrei-me a eles e pensei - não haverá passo que me atrase o destino.
E assim premeditadamente teria decidido.
Passados uns anos esses sapatos já velhos e gastos de sola esburacada até à crosta das feridas dos pés de meias rotas, foram colocados em cima da roupa com que o cangalheiro me iria vestir para descer à terra. Levava a roupa de sair mas os sapatos, esses pobres coitados que tinham percorrido todas as ruelas, mesmo aquelas mais escondidas, eram os de todos os dias.
Morri amargurado mas satisfeito por ter visto tudo o que poderia ter observado. Em paz de espírito, finalmente, lembro-me de ter percebido um levantar a cabeça e no escuro da minha altura e tamanho, sentir que lá ao fundo estavam os meus fiéis companheiros de comprometidas caminhadas. Aquele sapato esquerdo ainda tinha o atacador, o outro, aquele do direito pé que sempre foi torto já o tinha perdido..."
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