terça-feira, 27 de dezembro de 2022

 Um pensamento

Apetece-me ser genuinamente feliz por 24 horas, adormecer feliz, acordar feliz e viver esse dia inteiro assim até adormecer de novo, mesmo que tenha de acordar em realidade.

Experimentar um estado de felicidade e alegria mas com todo o circense item de euforia anulado.

Humanamente não é possível. Obriga a fazer um esvaziamento de sensações e emoções que possam conduzir ao início de outra forma de viver, mesmo que momentânea.

O médico e a enfermeira que o tem assistido nestas últimas semanas, conversavam calmamente como que atribuindo e recebendo dicas de apoio e procedimentos.

Iniciava o processo de retirar a sedação induzida.

No canto oposto galopava do trote em rumor de choro. Duas pessoas aparentando uma idade próxima do limite se curvavam um sobre o outro com a bengala por meio a suster aqueles corpos.

O médico virou dois passos e estendeu a mão em concha sem dizer palavra.

A enfermeira revertia o processo.

Estava há algumas semanas, muito mais que as horas de felicidade pretendidas, num estado de absoluta felicidade como não havia memória de ter tido.

Revertido o processo a máquina foi desocupada.

Aquele corpo rígido vivia momentos únicos. Foi no estado de coma profundo que não se sentiu mortificado na sua dor.

A enfermeira tinha um saco com a insígnia do hospital gravado, onde estavam guardados os pertences recuperados.

Os sapatos, um lenço recuperado da algibeira das calças destruídas e ensanguentadas, um relógio com o vidro partido e a bracelete amolgada... O comboio tinha levado o resto sem se aperceber.

A enfermeira depositou o saco dos haveres e murmurou, agora está em paz, e desdobrou o lençol até se observar o contorno do nariz e da testa calva.

Passados três dias, o corpo foi enterrado e o senhor da bengala também não esteve presente na cerimónia.

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