domingo, 18 de dezembro de 2022

da sabedoria do mar e suas gentes

... apetece-me gritar de tal forma estridente, não importa a força com que se oiça, mas que provoque uma comoção avassaladora, como a chegada de um tufão acompanhado de um tsunami que invade e destrói tudo à sua passagem. 
Ouvi dizer pela boca pueril de um menino, escondida atrás dos olhos da bondade inicial, que os peixes faziam ondas como ele fazia bolinhas de sabão.
Lembro-me tão bem de tantos dias onde num alguidar de lavar a roupa, conseguia fazer saltar a espuma e as bolas de sabão. As que se soltavam, pareciam bolas da árvore de natal. Livres e soltas, acabavam rapidamente o tempo em que estavam presas naquele liquido sujo resultado de uma lavagem tosca de um qualquer trapo, dava-lhes um sopro e seguiam. Não seguiam não. Bruto, rebentava todas. A beleza, já não era conseguir que elas fugissem ao sabor do vento, mas explodir salpidando tudo. Quanto mais gordas, mais carnudas nos vestígios que transbordavam fora do alguidar.
Naquele momento, esqueci a ousada tenra idade do rapazola, e deixei-me perguntar, como é que os peixes fazem as ondas. Que sabia ele, sem ponto de interrogação que demonstra alguma dúvida, da forma dos peixes fazerem ondas. Seguramente seria pelo abanar da cauda, quando estavam em cardume, poderiam ter uma força enorme para atirar a fúria do mar através de uma massa de água enrolada e que chegava à terra... 
Raios não faz sentido. Foi uma brincadeira de mau gosto, de um miúdo armado em engracadinho.
Passados uns dias encontrei-o ao lado da mãe no tanque comunitário da aldeia, ia de passagem até ao alto da colina ver a vastidão do mar. 
No tanque, templo sagrado onde as mulheres nesse tempo urdiam o sagrado feminino, eram cúmplices uma das outras e que reunidas trocavam a violência de esfregar e bater a roupa, pelo momento grupal da magia do momento. Ali se cantada, sozinhas, sozinhas acompanhadas, em silêncio, ou na espiritualidade do grupo. Homem não entrava. Esse ser da comunidade nao era bem vindo por elas nem pelos seus pares. Ali só existiam as mulheres. As viúvas, as mães, as filhas condenadas à vida das mães, às meninas e meninos que na tenra idade não têm sexo que lhe bifurque o caminho da estrada dos dias vindouros, eram como seres não definidos e ainda estavam no seu tempo de não serem pecadores pela presença. 
O código de vida nestas comunidades era mais forte que a lei de Deus. Só a memória dos homens das viúvas era aceite e presente. Ali estavam presentes numa invocação que as casadas dos pescadores mortos aceitavam mortificar na lembrança.
Num posto abaixo, estariam as casadas dos embarcadiços, futuras viúvas que carregavam por antecipação o peso do negro. Noutro lado estavam as mulheres dos menos capazes e dos aleijados. São mulheres dos homens que perderam a possibilidade de ir na faina. São as mulheres dos que não se levantam e só reparam as redes que os homens a sério as levarão lá para dentro. Um ou outro, já não vai pelo peso das medalhas. Um que não tem dedos que a rede lhe os levou, outro cego por ter sido picado por um atiradiço que quis fugir da rede que lhe prendia a barbatana da cauda. Havia excluídos de toda a espécie e temerários de valentias galhardas, que repercutiam o seu estatudo no tanque das mulheres da aldeia.
O bater compassado da roupa que enrola no tanque, o ritmo que ao fim de uns minutos vai sendo ganho, e depois, só depois no andamento certo entram as vozes. Lamento da vida dura da mulher do pescador que assim ajudava a tirar os restos dos dias de que aquela roupa era testemunha.
Ao fim da tarde, ainda sob a luz de fora, o homem sisudo que faz cerimónia nas palavras, passa pelos dedos a rede que amanhã será lançada às sortes. A mulher cuida do pouco, muito que há a seu lado. Os olhos dela, vigilantes e perscrutadores, saberão pela observação do homem, se o mar amanhã está de feição, se metem remos e levantam vela para sair, se vão trazer peixe, se o seu homem tem medo.
Assim são as hierarquias da comunidade e da casa. Já, até pela sorte inicial, os filhos são hierarquizados. As meninas cedo aprendem a imitar as mães, o miúdos sonham ter o seu próprio barco e pescar multidões.
Porque é que o miúdo sabia dizer que os peixes faziam as ondas, que imaginava ele da vida para se confundir com esse dito.
Olhei-o nos olhos e disse, achas mesmo que os peixes empurram o mar com a cauda e fazem aquelas ondas de espuma... 
Os seus olhos diziam tudo. Perplexidade perante o modo e a explicação das palavras. 
Realmente é ridículo fazer a pergunta, arriscar ser visto com a indiferença e menoridade da tolerância com que se olha para os bêbados e os desfezados da vida. 
Só quem consegue nadar até ao fundo do mar e gritar, percebe a força da fúria de um grito surdo. Debaixo de água não há sons, só medo e desespero. Isso são as ondas que chegam a terra, são essas ondas que as viúvas vão ao cimo do monte tentar ouvir, a forma como se enrolam dizem muito da morte e da sorte da faina.
Inteligente, perguntou-se ao menino, se não havendo som dentro do mar, como se explica a forma como as baleias falam umas com as outras, até mesmo distantes muitos quilómetros entre si, e que não deixavam de ter resposta das suas companheiras da mesma espécie.
Aquele sorriso vindo do chão que me atingiu o olhar, viajante pela orla e rendilhado da terra, foi quase fulminante. 
Como é possível que um olhar de um menino que ainda não é rapaz, pouco mais que ninguém, possa descredibilizar a vida de um homem de outras artes e afazeres. É certo que os miúdos já trazem no sangue alguma sabedoria dos pais pescadores, e que as meninas, a tristeza da viuvez das mães e avós. 
As baleias não falam. Só um estúpido pose achar que as baleias falam umas com as outras.
As baleias cantam num profundo lamento.

Sem comentários:

Enviar um comentário